quarta-feira, 20 de novembro de 2013

FARIAS E A MOÇA

Minha pessoa acorda cedo todos os dias. Isso ocorre há tanto tempo que nem me lembro de quando começou. Às vezes me recordo de meu finado pai à porta do quarto me chamando: “Farias vá para a escola já passam das sete”. Seu Clovis foi um pai acima de qualquer crítica, e assim deve ter sido minha educação. A primeira comunhão, a crisma e outras ações religiosas, embora sob os cuidados de minha mãe Dona Tamísia da Barroca foram todas acompanhadas pelo velho Clóvis: “Tamísia esse menino foi para a catequese?” Dias bons aqueles, que Deus os tenha em um bom lugar.

Acordar cedo e ir para a repartição têm sido a rotina de meus dias nesses anos abençoados de 1998. Meu chefe, seu Antenor, um dia me disse: “Farias, é o trabalho que dignifica o homem”. Bem, eu não concordo muito não, pois, em nosso país, a classe trabalhadora nada tem. Mas deixa isso pra lá. Antenor é um sexagenário muito rigoroso, contudo, devo ter caído em sua graça. Nunca mais cheguei às sete e meia. Todo mundo reclama, mas, Antenor diz: “Deixa o homem quieto”.

Com a cumplicidade de Antenor, por vezes caminhei de manhã cedo na linda Aracaju ao desabrochar do dia. Parece que as pessoas estão melhor pela manhã. Todo mundo diz bom dia. Os sorrisos nos lábios são muitos. O calçadão da Rua da Frente fica cheio de pessoas com os cabelos pintados de preto. Elas vão e voltam como que esperassem um milagre. Lembro-me do dia que encontrei uma conterrânea de Campos. A mulher estava entrando nos setentas, no entanto, sua lucidez me deixou de boca bem aberta.

- Mas Dulce, quanto tempo!

- Quanto tempo o que? Farias tenha fé em Deus! Isso num se faz! A moça te espera até hoje!

- E ela me espera?

- Não, num espera não! Rapaz, que coisa feia!

- Ora, Dulce! São coisas da vida! Não dava para eu ficar com uma menina daquelas, né.

- Então não enchesse a cabeça dela de esperança! Farias, você foi sem vergonha! Tentei mudar o rumo da conversa, mas, a velha Dulce foi impiedosa. O caso é que há dez anos quando minha pessoa tinha cinquenta e quatro, conheci uma moça durante uma visita a Vila de Campos, a atual Tobias Barreto...

Era época de missões. Tinha gente de todo canto do imenso sertão entre Tobias e Poço Verde. A cidade, em determinadas horas parecia mais um formigueiro gigante. Todo mundo queria a benção de Nossa Senhora Imperatriz dos Campos. A praça defronte a igreja matriz estava tomada de gente. Lembro-me muito bem de uma anãzinha, natural de Itabaianinha. Dizem que lá tem a cidade dos anões. A moça queria ver a celebração, mas, o povo eufórico não deixava a mulher passar adiante. A coitada dizia: “Com licença, com licença” e nada do povo atender. Fiquei um pouco indignado com isso e acompanhei a pobre mulher até o cruzeiro dizendo-lhe: “Suba na base de pedra e você vai ver melhor”. A mulher fez isso. Quando seus olhos miúdos e azuis viram a nave do santuário, a mulher passou a exalar alegria por todos os poros de seu pequeno e frágil corpo. Ela ficou para trás e eu segui meu destino em meio ao povo. Andei pela festa toda até o sino da igreja bater avisando o fim da missa. Decidi passar novamente pela Praça da igreja para ver como as coisas estavam. O local estava vazio, o chão da praça feito de pedras portuguesas estava coberto de lixo, sacos de pipoca, guardanapos, canudinhos etc. Parecia que uma imensa boiada havia passado no local. No canto, defronte a pousada “Sol Dourado” avistei duas pessoas que conversavam baixinho, ora riam, ora cochichavam. Uma delas eu já conhecia, era a anãzinha, a outra era uma moça de seus trinta e cinco anos. A menina tinha uma aparência ibérica muito bem desenhada pelo criador. Olhos verdes claros, cabelos loiros, mas não muito loiros, um metro e setenta e dois, uma cintura brasileira bem definida, e pele branquinha mediterrânea como o sol da Grécia.

Meus olhos castanhos claros caíram de cheio sob a moça que me correspondia com sorrisos pelo canto da boca e olhares de gatinha mansa, aqueles que as atrizes de televisão fazem para mostrar ao público que a cena vai esquentar. A anãzinha ao ver-me diz: “Olha, Bela, meu salvador!” Na verdade, cá entre nós, minha pessoa, digo, eu mesmo, sou ateu. Mas, o salvador estava ali na hora certa para socorrer uma pobre anãzinha e agora recebia, quem sabe, do divino mestre uma recompensa: Bela!

- Eu sou Maria das Dores. Apresentou-se a pequena mulher.

- E essa é Bela, minha sobrinha. Continuou o pequeno ser. Cocei a garganta e disse meu nome com dúvidas se estava fazendo a coisa certa.

- E o meu é Farias. Após apresentados acompanhei as duas mulheres até o bar Secos e Molhados onde elas esperariam o ônibus para o Povoado Ilha.

- Quando é que você aparece lá, Farias? No sertão é assim, depois que se quebra o gelo, o sol aparece e esquenta as relações.

- Nesse final de semana. E foi assim durante uns dois meses. Com o tempo, eu passei a dormir na casa de Bela, com todo o respeito é claro.

As noites dormidas na casa de Bela e sua tia foram marcadas pelo misto de tensão e prazer. Primeiro, a anãzinha não me dava chances de realizar meu intento, secundo, quando Bela tocava em mim, eu me desmanchavam de prazer. Convenhamos um homem na minha idade viver um caso de amor com uma moça de trinta e cinco é, no mínimo, algo fora da regularidade. Os meses passavam, e minha pessoa fiel aos finais de semana na casa da anãzinha. Tudo que eu queria era uma chance de ficar sozinho com Bela.

- Farias e Bela venham cá!

- Pois não tia! Disse Bela como que soubesse o conteúdo da conversa.

- Vou passar esse final de semana em Campos. Vocês se comportem!

- Nos comportaremos tia, num é Farias?

- É. Não sei muito bem o que estava na minha cabeça, mas, no íntimo eu sabia que algo estava acontecendo.

- Num se preocupe, cuidarei de Bela como se fosse minha filha! A anãzinha entrou no ônibus e acenava com sua mãozinha para nós. No seu semblante estava um ar de “Deu a louca no mundo”. Tudo isso minha humilde pessoa viu, mas, não se importou!

Liguei a televisão para ver alguma novidade. Enquanto isso a jovem moça estava no banheiro a banhar-se. A televisão era aquele velho tédio de todas as manhãs e tardes dos finais de semana. Nada tinha de bom, exceto, os programas e shows tão batidos que todo mundo já sabia o que ia passar “Retrato da Vida”, “Roda da Esperança”. Eu sabia que meu alento àquele final de semana seria a jovem Bela. Eu precisava me sentir novo de novo. A menina saiu do banheiro enrolada numa toalha rosa. Passou pelo corredor onde pude ver sua silhueta: “Sensacional”. E finalmente, entrou em seu quarto, de onde ela me chamou: “Farias”.

- Farias, você pode ajudar?

- Claro, Bela!

- Passe esse hidratante em mim. Ela me estendeu a mão esquerda. Nela estava o pequeno frasco de hidratante. A pele da moça era macia como seda. Adorei cada centímetro umedecido pelo hidratante. Em certo ponto eu parei. Às vezes, é embaraçante um homem tocar numa mulher. Disse eu a mim mesmo: “Seria uma sensação indizível tocar nela toda, mas, devo manter mina compostura”. Com discrição a devolvi o creme. Ela o recebeu sem me dizer uma palavra, o silêncio entre nós dois falava muito. Seu peito, um pouco ofegante, clamava a mim que fazia de conta nada entender.

- Bela, vou ver se já acabou o show.

- Certo, meu cavalheiro! Essa palavra, por um instante, me causou arrependimento de não ter sido ousado. Fui novamente para a sala. Olhei para o relógio de parede; eram nove e trinta da manhã. Minha mente pensou na velocidade da luz: “Já” Passa rápido. Gritei para Bela perguntando-lhe a que horas sua tia voltaria. Bela disse com um tom sério: “Depois de meio dia”. Bela saiu do quarto e veio para junto de mim. A moça estava um tanto calada, mas, isso não lhe impediu de me fazer uma proposta maravilhosa: “Farias, vamos para o quintal deitar na rede!” Não sou cearense, todavia, depois que experimentei a rede da anãzinha me apaixonei.

Bela usava uma bermuda jeans e uma camiseta fina de algodão. Havia um pequeno desenho bem meio da mesma; era um pássaro beijando uma flor. Seu cabelo fino e bem cuidado estava preso, e o seu perfume me deixou um pouco tonto. Eu o sinto até hoje, parece que ele impregnou-se em mim. A camiseta de Bela seguia o curso dos movimentos de seu corpo franzino e esbelto. Ora, ela me dava a visão de seu umbigo bem talhado naquela tábua chamada barriga. A visão de um simples umbigo fazia meu coração cinquentão acelerar e o suor escorrer pelo pescoço como uma tênue cascata. Ora, era a pequena bermuda jeans que me permitia ver aquelas penas bem trabalhadas e que me inspiravam muitos desejos. Pensei comigo: “Aos cinquenta eu vivo um momento único!” “Mas, que mulher!” De fato, Bela era um bom exemplar da mulher sergipana.

A conversa fluía, porém, Bela nada me perguntava sobre meu passado. A jovem moça se concentrava apenas no momento presente. Para ser verdadeiro, até hoje não entendi o porquê dela se envolver com um homem bem mais velho como eu. A rede balançava e com ela ia o casal em descobertas e descobertas. Seus lábios eram doces como mel, e seu hálito aumentava em cem vezes minha libido. Parece que suas entranhas eram abençoadas. Mas, algo estava faltando: “Vê-la totalmente nua!”

O relógio da sala bateu onze e meia. O tempo passava e nós dois nem via. Bela se levantou da rede e foi preparar alguma coisa. Eu a acompanhei até a cozinha; ora ou outra eu lhe abraçava e lhe beijava. Nós dois preparamos a comida; comemos juntos, e depois voltamos para o quintal: “Bela não se preocupe, eu lavo os pratos”. Um homem quando quer impressionar uma mulher diz de tudo!

Ficamos na rede a conversar sem se preocupar mais com nada, para nós dois o tempo era aquele; juntos o tempo era nosso! Bela pegou no sono eu resolvi explorar seu corpo fazendo-lhe pequenas carícias. O sono da menina era tão profundo que descobri seu corpo em poucos minutos, minha mão ficava de vez em quando dormente tamanha era a força que eu fazia para torna-la leve como uma pluma. Agradeci a mãe natureza por conhecer aquele corpo divino. Lentamente tirei-lhe a camisa. O que é muito estranho é que não tive dificuldade para fazê-lo parecia até que a camisa sabia do próximo movimento. Depois abri os botões de sua bermuda, e lentamente fui vendo o que estava do lado de dentro: “Meu Deus!” Embora ateu, mas foi essa a palavra que eu disse. Bela era toda linda!

Tirei sua roupa toda, depois tirei a minha. Sentei-me na rede e puxei seu corpo adormecido até mim de forma que eu ficasse entre suas pernas. Aí, a coisa pegou, meu coração batia tão rápido que parecia que ia sair pela boca. A respiração da menina ficou de imediato ofegante; a pobre moça mordia os lábios o que me fazia ficar ainda mais vivo. Alguns gemidos saiam ritmados de sua boca. E isso aumentava a quantidade de gotas de suor no meu rosto. Nós dois estávamos banhados de suor! Fizemos a mesma coisa uma; duas vezes, até eu me cansar. Devo admitir, a velhice é uma parte bonita da vida humana, mas, nada se compara a força da juventude.

A anãzinha nos pegou nus na rede. Ambos adormecidos. A mulher me pôs para fora de casa. Desde então nunca mais a vi. Dona Dulce, a vizinha, depois ao encontrar-se comigo na feira me contou que a moça me esperava. Mas, eu achei que foi o bastante para nós dois.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O caos: a bagunça em ordem

Texto dedicado à Tainara Inocêncio


Não defendo a desordem. O que eu luto até o fim das minhas forças é pela aceitação da desconstrução para que sejamos capazes de encontrar outras maneiras de re-montar tudo o que foi desordenado. Falo sem nenhum medo de me arrepender que amo o caos, mas o caos não é o contrário da ordem. É no caos que encontramos toda a nossa criatividade e senso crítico, pois é lá que podemos reinventar o nosso mundo, assim como, construir novas paisagens e novos olhares acerca das coisas.

Quem disse que a ordem não é importante? Quem é que nesse mundo em nenhum instante parou para encontrar sentidos nas coisas, ou seja, organizá-las em classificações? Eu pertenço a esse grupo de pessoas. Porém, eu me nego em ter que admitir que a ordem pode ser reduzida a ordem por ela mesma! É importante também aprendermos a nos atrever e a nos perder nas traquinagens liberadas pela bagunça! A vida a todo instante nos surpreende com suas imprevisibilidades, e se eu não aprendo a amar o caos da mesma forma que eu amo a ordem, eu vou me frustrar e me perder de mim, mesmo evitando vivenciar o caos.

A ordem é importante, mas ela por ela apenas é cômoda. A ordem não transfere, nem explode novos afetos. A ordem torna as coisas estáticas como se essas coisas não tivessem as intervenções das danações humanas. Definitivamente não! A vida é feita de mudanças e é só aprendendo a saborear com o caos também que eu reconhecerei a tamanha alegria de poder me desencontrar para a partir disso, me reencontrar.

Eu vejo uma vida cheia de pessoas assustadas por saber aceitar apenas a ordem. Eu vejo uma vida permeada de bocas abismadas por justamente se enganarem por acreditar na possibilidade absoluta de que os fatos do dia a dia podem ser plenos e perfeitos. O que eu vejo são pessoas incapazes de suportar o choque de valores na convivência com as outras. A intolerância existe porque o caos é negado. Resultado: a tal da diversidade, da inclusão, da relatividade, do amor ao próximo vão rolando por esgotos podres e profundos.

Ninguém mais ama, pois a ordem é sempre a ordem do dia. Ninguém mais ama porque o ato de amar implora que a gente saiba naufragar e se arriscar no caos, pois só nele é que perceberemos o quanto os outros não são nós mesmos. É só com o caos que saberemos o quanto os outros por não serem nós mesmos, vivem experiências múltiplas, mostrando assim, que a vida, apesar da comunicação, dos códigos, das instituições, das regras, enfim, da ordem, sapateia em meio a um chão esburacado e movediço do caos.

Em outras palavras, o fato de não admitirmos o caos em nossas vidas faz com que a gente não aceite as frustrações. Estamos adoecendo demais por sabermos viver apenas com a ordem. Não suportamos sermos nós mesmos, pois queremos o todo igual (bem a cara da ordem), não suportamos admitir para nós mesmos que erramos, que fomos mal educados, estúpidos, pregos, malditos, arrogantes.

O caos vem nos ensinar que somos humanos por sermos cacos que querem se organizar. Mas veja: querem se organizar. Apenas isso. De fato nos organizamos, mas quando achamos que falta apenas mais uma pedra pra finalizarmos nossa casinha protetora de nós, ouvimos os roncos dos trovões, somos banhados por tempestades e voltamos a ter o horizonte infinito e imprevisto das possibilidades como nosso único teto.

Essa nossa escola ocidental tão preocupada com a ordem tem nos tornado medrosos. Não sabemos pensar por nós mesmos. Temos que sempre esperar a resposta de alguém que mitificamos como autoridade para encontrarmos sentidos nas coisas, quando na verdade esse sentido poderia vim de nós mesmos sem precisar do mestre das verdades trepado no topo máximo de uma hierarquia tão admirada pela ordem.

Eu digo: o caos sugere a aventura, e foi de aventuras que a história viveu até agora, pois sem riscos, não haveria alterações em nossos valores, e, portanto, não faríamos histórias. Temos que chutar o pau da barraca sim. Temos que cuspir nas ditas verdades que nos são impostas garganta a dentro mesmo quando não estamos com fome. Temos que sangrar as canelas, ferir nossos joelhos, arrombar os lábios com as quedas sim.

Sabe por que? Mesmo a gente sabendo que o melhor de tudo seria nos acalentar com a previsibilidade da ordem, a vida nos surpreende com suas experiências boas e ruins. Quem quiser aceitar o caos vai sofrer e sorrir do mesmo jeito de quem aceita apenas a ordem, mas há uma diferença: quem aceita o caos, sabe que é humano, e por isso mesmo, não é invencível. Sabe que busca a alegria, mas nem por isso pode ser plenamente feliz.

Enfim, sabe que pode desmontar, desfazer, remontar e reconstruir as coisas, e por isso mesmo, se hoje chora com a putaria imposta pela vida, tem consciência de que pode re-organizar todos os seus afetos, pois é isso que aprendemos com o caos, ou seja, de que nos perdemos para nos desmontar, nos quebrar, nos achar, nos refazer, mas também nos superar.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

ESCURAS SOMBRAS DO DIA

Elizabete saiu cedo esta noite. Recordo-me do barulho da porta da sala de estar quando ela deixou a casa. Depois sobre todos nós veio um estranho e forte silêncio. O vento da praia soprava pelas janelas trazendo o gemido das ondas na beira do mar. As velas da sala e da cozinha estavam acesas. Do lado de fora, um rapaz com cara de sulista descasca uma laranja com as unhas calmamente. A porta da cozinha batia para lá e para cá pelo vento que soprava dos fundos. Recordo que voltei para o meu canto e lá fiquei. Mas, saibam que embora fora do problema, eu o vi acontecer bem defronte meus olhos.
A meia noite veio logo. Pensei que era uma brincadeira pueril assustar uma pessoa com histórias de coisas do outro mundo. Esta meia noite foi fria e silenciosa. A família se reuniu e todos contaram de si e alguma novidade. Por isso que fui para meu canto. Não suporto mais quando ele conta aquelas histórias de lampião. “Nego veio, Lampião matou muita gente, mas, era um homem bom; esse lado da história o povo não conta”.
De fato, ele estava velho e cansado. A despeito da velhice e do cansaço ele estava muito lúcido. Elizabete dissera: “Pai, volto logo, é um tapa!” O velho coçou a cabeça e disse com voz rouca: “Deus te abençoe, filha!” Elizabete saiu para visitar uns amigos que moravam do outro lado da cidade. Eu vi quando ela entrou em um carro preto. Elizabete saiu com os amigos.
Retornei para a casa do velho na madrugada. Umas três horas eu ouvi o ronco de Guilherme. Foi o rapaz da laranja que caiu no sono após ouvir o jogo de futebol no radio velho. A casa estava solitária. Darci e Pedro dormiam no chão. Achei muito estranho aquilo. No entanto, o que é que eu tenho a ver com isso? Não é assunto meu! Andei pela casa até me cansar. Então sentei em frente à televisão e fiquei vendo os programas. Repentinamente, eu apaguei, entrei numa viagem mental pelas formas e cores que fluíam daquela tela...
Eu estava em Campos de Rio Real. Era época de muita chuva. O mês de julho entrou molhado. A cidade respirava eleição. Uma grande disputa em Campos estava ocorrendo. Do lado dos Cabaus, os Ferreiras respondiam; e do lado dos Pebas, Os Gonçalves davam a última palavra. A briga estava feita. E Robertinho no meio! Esse era um rapaz de ouro, o único problema segundo sua namorada era ele ser filho de um Peba, o doutor Aristóteles – o médico de sua família, como ele gostava de dizer. Amélia amava Robertinho, e Robertinho amava Amélia.
A duas famílias não apoiavam o amor deles, por isso eles foram morar em uma casa de praia para as bandas do mosqueiro. O pequeno sítio tinha coqueiros, laranja, e até um pé de jaca. A casa era confortável e com quatro quartos espaçosos com guarda – roupa e todo o conforto. O problema era que naquela época não tinha luz ali. As velas e candeeiros iluminavam a casa durante as noites. Por muito tempo aquele foi um lugar que muita gente boa gostou de visitar.
- Se sente melhor agora? Perguntou ao moço um homem com jaleco branco.
- Claro doutor! Eu parei onde mesmo?
- Deixa para lá, Gumercindo!
- Mas, olha que moço bonito! Uma senhora de meia idade entra na conversa subitamente. O estranho rapaz para o diálogo com o médico para examinar a pessoa diante de seus olhos.
- Ela é quem mesmo? Perguntou o moço quase gaguejando. A mulher olha para o médico com o olhar de desconfiada e desesperança.
- Lamento Deusita, mas, o caso é esse. A senhora de meia idade cujo nome era Deusita deixa médico e paciente a sós de novo.
Eu me lembro daquele tempo que todos nós sentávamos ao redor da fogueira para comer milho assado e soltar fogos. Oh, tempo bom meu Deus! Sabe, Carla era tão bonita, eu me lembro dela. Mas, aposto que ela já casou! As pessoas são assim, casam e vão embora deixando um pedaço de suas vidas para trás. As coisas pareciam ser assim com Gumercindo.
- Seu Gumercindo dá licença! A mulher afro descendente levanta a camisa do rapaz e injeta uma substância em suas veias. “Pronto!” “Doeu?” “Não me diga isso!” o homem tornou a falar.
“Bem, eu estava mesmo era me lembrando de Campos quando nós chegamos por aqui”.
- Ele fica assim o dia quase todo.
- E o que é isso doutor?
- É um tipo de esquizofrenia muito delicado.
- Tem jeito?
- Todo mundo fala só, não é?
- É, mas, esse é diferente.
Levaram Gumercindo para o quarto. A injeção estava fazendo efeito. O pobre homem foi levado na mesma cadeira que sentava. “Todas as vezes que ele falar assim compulsivamente aplique nele a mesma quantidade de hoje”. Calaram Gumercindo novamente. Naquela clínica a paciência era muito pouca. Sua esposa Deusita o visitava todo final de semana, mas, quando ele enganchava na conversa, ela se retirava. Ela pediu a clínica para sedá-lo em situações como essas. Afinal, quem suporta escutar uma conversa partida?
Gumercindo adormecendo em seu leito solitário, por um instante, muito breve por sinal, olha para os lados para ver se alguém o via. Gumercindo levanta-se da cama e segue em direção ao banheiro. O banheiro era um dos melhores lugares para o pobre Gumercindo, pois, era um lugar quase seu. Ele puxa a porta do armário e retira de dentro umas anotações que ele andava fazendo aquelas noites. O paciente da Clínica Repouso Seguro folheia seus escritos. Dia 21 de março de 1998:
“Mais uma vez a segui depois do horário de trabalho; seu telefone foi às 17:58 para me avisar que chegaria por volta das seis da tarde. Ela estacionou o carro no shopping center e entrou no recinto; me contive permanecendo no estacionamento; ela logo apareceu; meu Deus eu não acredito nisso? Isso não é possível; até você Deusita!” Gumercindo lia o texto e repetia tudo novamente. Ele queria encontrar um nexo lógico para tudo que vivera, mas, parece que o mundo era agora algo muito difícil de ser entendido. “Eu digo as pessoas e elas me dizem: ‘É impossível’” “Será que enlouqueci?” “Acho que devo ir fundo nessa história”.
De fato Gumercindo pagou uma investigação privada para esclarecer os fatos de vez. Em pouco tempo, ele tinha nomes, endereços e horários. Gumercindo passou a ser a sombra daquela mulher. Ele alugou um quarto no motel onde ela se encontrava com seu amante. Por uma câmera ele acompanhava tudo que ela fazia. Depois de um determinado tempo, Gumercindo percebe que seus pensamentos estavam, digamos, um pouco fora do usual. Depois as dores de cabeça vieram, e com elas algumas alucinações.
- Mulher teu marido está louco!
- Que é isso gente!
Deusita internou Gumercindo. Desde então ela vive de sua pensão e de alguns trocados que ela ganha como técnica de informática.
Gumercindo sai de seu lugar favorito e volta para sua cama. O sono estava tomando conta dele. O homem nordestino acostumado com uma vida dura para ter conforto se rendia ao efeito do calmante. Seus olhos se fecham como janelas de uma casa solitária. O sono se apodera do homem. Seu rosto mostra as contrações que criam rugas, ora de alegria e prazer, ora de dor e sofrimento. Sua respiração e os seus batimentos cardíacos compunham uma sinfonia a parte. O enredo da trama que se desenvolvia em sua mente; ninguém jamais soube.