Minha pessoa acorda cedo todos os dias. Isso ocorre há tanto tempo que
nem me lembro de quando começou. Às vezes me recordo de meu finado pai à
porta do quarto me chamando: “Farias vá para a escola já passam das
sete”. Seu Clovis foi um pai acima de qualquer crítica, e assim deve ter
sido minha educação. A primeira comunhão, a crisma e outras ações
religiosas, embora sob os cuidados de minha mãe Dona Tamísia da Barroca
foram todas acompanhadas pelo velho Clóvis: “Tamísia esse menino foi
para a catequese?” Dias bons aqueles, que Deus os tenha em um bom lugar.
Acordar
cedo e ir para a repartição têm sido a rotina de meus dias nesses anos
abençoados de 1998. Meu chefe, seu Antenor, um dia me disse: “Farias, é o
trabalho que dignifica o homem”. Bem, eu não concordo muito não, pois,
em nosso país, a classe trabalhadora nada tem. Mas deixa isso pra lá.
Antenor é um sexagenário muito rigoroso, contudo, devo ter caído em sua
graça. Nunca mais cheguei às sete e meia. Todo mundo reclama, mas,
Antenor diz: “Deixa o homem quieto”.
Com a cumplicidade de
Antenor, por vezes caminhei de manhã cedo na linda Aracaju ao
desabrochar do dia. Parece que as pessoas estão melhor pela manhã. Todo
mundo diz bom dia. Os sorrisos nos lábios são muitos. O calçadão da Rua
da Frente fica cheio de pessoas com os cabelos pintados de preto. Elas
vão e voltam como que esperassem um milagre. Lembro-me do dia que
encontrei uma conterrânea de Campos. A mulher estava entrando nos
setentas, no entanto, sua lucidez me deixou de boca bem aberta.
- Mas Dulce, quanto tempo!
- Quanto tempo o que? Farias tenha fé em Deus! Isso num se faz! A moça te espera até hoje!
- E ela me espera?
- Não, num espera não! Rapaz, que coisa feia!
- Ora, Dulce! São coisas da vida! Não dava para eu ficar com uma menina daquelas, né.
-
Então não enchesse a cabeça dela de esperança! Farias, você foi sem
vergonha! Tentei mudar o rumo da conversa, mas, a velha Dulce foi
impiedosa. O caso é que há dez anos quando minha pessoa tinha cinquenta e
quatro, conheci uma moça durante uma visita a Vila de Campos, a atual
Tobias Barreto...
Era época de missões. Tinha gente de todo canto
do imenso sertão entre Tobias e Poço Verde. A cidade, em determinadas
horas parecia mais um formigueiro gigante. Todo mundo queria a benção de
Nossa Senhora Imperatriz dos Campos. A praça defronte a igreja matriz
estava tomada de gente. Lembro-me muito bem de uma anãzinha, natural de
Itabaianinha. Dizem que lá tem a cidade dos anões. A moça queria ver a
celebração, mas, o povo eufórico não deixava a mulher passar adiante. A
coitada dizia: “Com licença, com licença” e nada do povo atender. Fiquei
um pouco indignado com isso e acompanhei a pobre mulher até o cruzeiro
dizendo-lhe: “Suba na base de pedra e você vai ver melhor”. A mulher fez
isso. Quando seus olhos miúdos e azuis viram a nave do santuário, a
mulher passou a exalar alegria por todos os poros de seu pequeno e
frágil corpo. Ela ficou para trás e eu segui meu destino em meio ao
povo. Andei pela festa toda até o sino da igreja bater avisando o fim da
missa. Decidi passar novamente pela Praça da igreja para ver como as
coisas estavam. O local estava vazio, o chão da praça feito de pedras
portuguesas estava coberto de lixo, sacos de pipoca, guardanapos,
canudinhos etc. Parecia que uma imensa boiada havia passado no local. No
canto, defronte a pousada “Sol Dourado” avistei duas pessoas que
conversavam baixinho, ora riam, ora cochichavam. Uma delas eu já
conhecia, era a anãzinha, a outra era uma moça de seus trinta e cinco
anos. A menina tinha uma aparência ibérica muito bem desenhada pelo
criador. Olhos verdes claros, cabelos loiros, mas não muito loiros, um
metro e setenta e dois, uma cintura brasileira bem definida, e pele
branquinha mediterrânea como o sol da Grécia.
Meus olhos
castanhos claros caíram de cheio sob a moça que me correspondia com
sorrisos pelo canto da boca e olhares de gatinha mansa, aqueles que as
atrizes de televisão fazem para mostrar ao público que a cena vai
esquentar. A anãzinha ao ver-me diz: “Olha, Bela, meu salvador!” Na
verdade, cá entre nós, minha pessoa, digo, eu mesmo, sou ateu. Mas, o
salvador estava ali na hora certa para socorrer uma pobre anãzinha e
agora recebia, quem sabe, do divino mestre uma recompensa: Bela!
- Eu sou Maria das Dores. Apresentou-se a pequena mulher.
-
E essa é Bela, minha sobrinha. Continuou o pequeno ser. Cocei a
garganta e disse meu nome com dúvidas se estava fazendo a coisa certa.
-
E o meu é Farias. Após apresentados acompanhei as duas mulheres até o
bar Secos e Molhados onde elas esperariam o ônibus para o Povoado Ilha.
- Quando é que você aparece lá, Farias? No sertão é assim, depois que se quebra o gelo, o sol aparece e esquenta as relações.
-
Nesse final de semana. E foi assim durante uns dois meses. Com o tempo,
eu passei a dormir na casa de Bela, com todo o respeito é claro.
As
noites dormidas na casa de Bela e sua tia foram marcadas pelo misto de
tensão e prazer. Primeiro, a anãzinha não me dava chances de realizar
meu intento, secundo, quando Bela tocava em mim, eu me desmanchavam de
prazer. Convenhamos um homem na minha idade viver um caso de amor com
uma moça de trinta e cinco é, no mínimo, algo fora da regularidade. Os
meses passavam, e minha pessoa fiel aos finais de semana na casa da
anãzinha. Tudo que eu queria era uma chance de ficar sozinho com Bela.
- Farias e Bela venham cá!
- Pois não tia! Disse Bela como que soubesse o conteúdo da conversa.
- Vou passar esse final de semana em Campos. Vocês se comportem!
- Nos comportaremos tia, num é Farias?
- É. Não sei muito bem o que estava na minha cabeça, mas, no íntimo eu sabia que algo estava acontecendo.
-
Num se preocupe, cuidarei de Bela como se fosse minha filha! A anãzinha
entrou no ônibus e acenava com sua mãozinha para nós. No seu semblante
estava um ar de “Deu a louca no mundo”. Tudo isso minha humilde pessoa
viu, mas, não se importou!
Liguei a televisão para ver alguma
novidade. Enquanto isso a jovem moça estava no banheiro a banhar-se. A
televisão era aquele velho tédio de todas as manhãs e tardes dos finais
de semana. Nada tinha de bom, exceto, os programas e shows tão batidos
que todo mundo já sabia o que ia passar “Retrato da Vida”, “Roda da
Esperança”. Eu sabia que meu alento àquele final de semana seria a jovem
Bela. Eu precisava me sentir novo de novo. A menina saiu do banheiro
enrolada numa toalha rosa. Passou pelo corredor onde pude ver sua
silhueta: “Sensacional”. E finalmente, entrou em seu quarto, de onde ela
me chamou: “Farias”.
- Farias, você pode ajudar?
- Claro, Bela!
-
Passe esse hidratante em mim. Ela me estendeu a mão esquerda. Nela
estava o pequeno frasco de hidratante. A pele da moça era macia como
seda. Adorei cada centímetro umedecido pelo hidratante. Em certo ponto
eu parei. Às vezes, é embaraçante um homem tocar numa mulher. Disse eu a
mim mesmo: “Seria uma sensação indizível tocar nela toda, mas, devo
manter mina compostura”. Com discrição a devolvi o creme. Ela o recebeu
sem me dizer uma palavra, o silêncio entre nós dois falava muito. Seu
peito, um pouco ofegante, clamava a mim que fazia de conta nada
entender.
- Bela, vou ver se já acabou o show.
- Certo,
meu cavalheiro! Essa palavra, por um instante, me causou arrependimento
de não ter sido ousado. Fui novamente para a sala. Olhei para o relógio
de parede; eram nove e trinta da manhã. Minha mente pensou na velocidade
da luz: “Já” Passa rápido. Gritei para Bela perguntando-lhe a que horas
sua tia voltaria. Bela disse com um tom sério: “Depois de meio dia”.
Bela saiu do quarto e veio para junto de mim. A moça estava um tanto
calada, mas, isso não lhe impediu de me fazer uma proposta maravilhosa:
“Farias, vamos para o quintal deitar na rede!” Não sou cearense,
todavia, depois que experimentei a rede da anãzinha me apaixonei.
Bela
usava uma bermuda jeans e uma camiseta fina de algodão. Havia um
pequeno desenho bem meio da mesma; era um pássaro beijando uma flor. Seu
cabelo fino e bem cuidado estava preso, e o seu perfume me deixou um
pouco tonto. Eu o sinto até hoje, parece que ele impregnou-se em mim. A
camiseta de Bela seguia o curso dos movimentos de seu corpo franzino e
esbelto. Ora, ela me dava a visão de seu umbigo bem talhado naquela
tábua chamada barriga. A visão de um simples umbigo fazia meu coração
cinquentão acelerar e o suor escorrer pelo pescoço como uma tênue
cascata. Ora, era a pequena bermuda jeans que me permitia ver aquelas
penas bem trabalhadas e que me inspiravam muitos desejos. Pensei comigo:
“Aos cinquenta eu vivo um momento único!” “Mas, que mulher!” De fato,
Bela era um bom exemplar da mulher sergipana.
A conversa fluía,
porém, Bela nada me perguntava sobre meu passado. A jovem moça se
concentrava apenas no momento presente. Para ser verdadeiro, até hoje
não entendi o porquê dela se envolver com um homem bem mais velho como
eu. A rede balançava e com ela ia o casal em descobertas e descobertas.
Seus lábios eram doces como mel, e seu hálito aumentava em cem vezes
minha libido. Parece que suas entranhas eram abençoadas. Mas, algo
estava faltando: “Vê-la totalmente nua!”
O relógio da sala bateu
onze e meia. O tempo passava e nós dois nem via. Bela se levantou da
rede e foi preparar alguma coisa. Eu a acompanhei até a cozinha; ora ou
outra eu lhe abraçava e lhe beijava. Nós dois preparamos a comida;
comemos juntos, e depois voltamos para o quintal: “Bela não se preocupe,
eu lavo os pratos”. Um homem quando quer impressionar uma mulher diz de
tudo!
Ficamos na rede a conversar sem se preocupar mais com
nada, para nós dois o tempo era aquele; juntos o tempo era nosso! Bela
pegou no sono eu resolvi explorar seu corpo fazendo-lhe pequenas
carícias. O sono da menina era tão profundo que descobri seu corpo em
poucos minutos, minha mão ficava de vez em quando dormente tamanha era a
força que eu fazia para torna-la leve como uma pluma. Agradeci a mãe
natureza por conhecer aquele corpo divino. Lentamente tirei-lhe a
camisa. O que é muito estranho é que não tive dificuldade para fazê-lo
parecia até que a camisa sabia do próximo movimento. Depois abri os
botões de sua bermuda, e lentamente fui vendo o que estava do lado de
dentro: “Meu Deus!” Embora ateu, mas foi essa a palavra que eu disse.
Bela era toda linda!
Tirei sua roupa toda, depois tirei a minha.
Sentei-me na rede e puxei seu corpo adormecido até mim de forma que eu
ficasse entre suas pernas. Aí, a coisa pegou, meu coração batia tão
rápido que parecia que ia sair pela boca. A respiração da menina ficou
de imediato ofegante; a pobre moça mordia os lábios o que me fazia ficar
ainda mais vivo. Alguns gemidos saiam ritmados de sua boca. E isso
aumentava a quantidade de gotas de suor no meu rosto. Nós dois estávamos
banhados de suor! Fizemos a mesma coisa uma; duas vezes, até eu me
cansar. Devo admitir, a velhice é uma parte bonita da vida humana, mas,
nada se compara a força da juventude.
A anãzinha nos pegou nus na
rede. Ambos adormecidos. A mulher me pôs para fora de casa. Desde então
nunca mais a vi. Dona Dulce, a vizinha, depois ao encontrar-se comigo
na feira me contou que a moça me esperava. Mas, eu achei que foi o
bastante para nós dois.
quarta-feira, 20 de novembro de 2013
quinta-feira, 14 de novembro de 2013
O caos: a bagunça em ordem
Texto dedicado à Tainara Inocêncio
Não defendo a desordem. O que eu luto até o fim das minhas forças é pela aceitação da desconstrução para que sejamos capazes de encontrar outras maneiras de re-montar tudo o que foi desordenado. Falo sem nenhum medo de me arrepender que amo o caos, mas o caos não é o contrário da ordem. É no caos que encontramos toda a nossa criatividade e senso crítico, pois é lá que podemos reinventar o nosso mundo, assim como, construir novas paisagens e novos olhares acerca das coisas.
Quem disse que a ordem não é importante? Quem é que nesse mundo em nenhum instante parou para encontrar sentidos nas coisas, ou seja, organizá-las em classificações? Eu pertenço a esse grupo de pessoas. Porém, eu me nego em ter que admitir que a ordem pode ser reduzida a ordem por ela mesma! É importante também aprendermos a nos atrever e a nos perder nas traquinagens liberadas pela bagunça! A vida a todo instante nos surpreende com suas imprevisibilidades, e se eu não aprendo a amar o caos da mesma forma que eu amo a ordem, eu vou me frustrar e me perder de mim, mesmo evitando vivenciar o caos.
A ordem é importante, mas ela por ela apenas é cômoda. A ordem não transfere, nem explode novos afetos. A ordem torna as coisas estáticas como se essas coisas não tivessem as intervenções das danações humanas. Definitivamente não! A vida é feita de mudanças e é só aprendendo a saborear com o caos também que eu reconhecerei a tamanha alegria de poder me desencontrar para a partir disso, me reencontrar.
Eu vejo uma vida cheia de pessoas assustadas por saber aceitar apenas a ordem. Eu vejo uma vida permeada de bocas abismadas por justamente se enganarem por acreditar na possibilidade absoluta de que os fatos do dia a dia podem ser plenos e perfeitos. O que eu vejo são pessoas incapazes de suportar o choque de valores na convivência com as outras. A intolerância existe porque o caos é negado. Resultado: a tal da diversidade, da inclusão, da relatividade, do amor ao próximo vão rolando por esgotos podres e profundos.
Ninguém mais ama, pois a ordem é sempre a ordem do dia. Ninguém mais ama porque o ato de amar implora que a gente saiba naufragar e se arriscar no caos, pois só nele é que perceberemos o quanto os outros não são nós mesmos. É só com o caos que saberemos o quanto os outros por não serem nós mesmos, vivem experiências múltiplas, mostrando assim, que a vida, apesar da comunicação, dos códigos, das instituições, das regras, enfim, da ordem, sapateia em meio a um chão esburacado e movediço do caos.
Em outras palavras, o fato de não admitirmos o caos em nossas vidas faz com que a gente não aceite as frustrações. Estamos adoecendo demais por sabermos viver apenas com a ordem. Não suportamos sermos nós mesmos, pois queremos o todo igual (bem a cara da ordem), não suportamos admitir para nós mesmos que erramos, que fomos mal educados, estúpidos, pregos, malditos, arrogantes.
O caos vem nos ensinar que somos humanos por sermos cacos que querem se organizar. Mas veja: querem se organizar. Apenas isso. De fato nos organizamos, mas quando achamos que falta apenas mais uma pedra pra finalizarmos nossa casinha protetora de nós, ouvimos os roncos dos trovões, somos banhados por tempestades e voltamos a ter o horizonte infinito e imprevisto das possibilidades como nosso único teto.
Essa nossa escola ocidental tão preocupada com a ordem tem nos tornado medrosos. Não sabemos pensar por nós mesmos. Temos que sempre esperar a resposta de alguém que mitificamos como autoridade para encontrarmos sentidos nas coisas, quando na verdade esse sentido poderia vim de nós mesmos sem precisar do mestre das verdades trepado no topo máximo de uma hierarquia tão admirada pela ordem.
Eu digo: o caos sugere a aventura, e foi de aventuras que a história viveu até agora, pois sem riscos, não haveria alterações em nossos valores, e, portanto, não faríamos histórias. Temos que chutar o pau da barraca sim. Temos que cuspir nas ditas verdades que nos são impostas garganta a dentro mesmo quando não estamos com fome. Temos que sangrar as canelas, ferir nossos joelhos, arrombar os lábios com as quedas sim.
Sabe por que? Mesmo a gente sabendo que o melhor de tudo seria nos acalentar com a previsibilidade da ordem, a vida nos surpreende com suas experiências boas e ruins. Quem quiser aceitar o caos vai sofrer e sorrir do mesmo jeito de quem aceita apenas a ordem, mas há uma diferença: quem aceita o caos, sabe que é humano, e por isso mesmo, não é invencível. Sabe que busca a alegria, mas nem por isso pode ser plenamente feliz.
Enfim, sabe que pode desmontar, desfazer, remontar e reconstruir as coisas, e por isso mesmo, se hoje chora com a putaria imposta pela vida, tem consciência de que pode re-organizar todos os seus afetos, pois é isso que aprendemos com o caos, ou seja, de que nos perdemos para nos desmontar, nos quebrar, nos achar, nos refazer, mas também nos superar.
Não defendo a desordem. O que eu luto até o fim das minhas forças é pela aceitação da desconstrução para que sejamos capazes de encontrar outras maneiras de re-montar tudo o que foi desordenado. Falo sem nenhum medo de me arrepender que amo o caos, mas o caos não é o contrário da ordem. É no caos que encontramos toda a nossa criatividade e senso crítico, pois é lá que podemos reinventar o nosso mundo, assim como, construir novas paisagens e novos olhares acerca das coisas.
Quem disse que a ordem não é importante? Quem é que nesse mundo em nenhum instante parou para encontrar sentidos nas coisas, ou seja, organizá-las em classificações? Eu pertenço a esse grupo de pessoas. Porém, eu me nego em ter que admitir que a ordem pode ser reduzida a ordem por ela mesma! É importante também aprendermos a nos atrever e a nos perder nas traquinagens liberadas pela bagunça! A vida a todo instante nos surpreende com suas imprevisibilidades, e se eu não aprendo a amar o caos da mesma forma que eu amo a ordem, eu vou me frustrar e me perder de mim, mesmo evitando vivenciar o caos.
A ordem é importante, mas ela por ela apenas é cômoda. A ordem não transfere, nem explode novos afetos. A ordem torna as coisas estáticas como se essas coisas não tivessem as intervenções das danações humanas. Definitivamente não! A vida é feita de mudanças e é só aprendendo a saborear com o caos também que eu reconhecerei a tamanha alegria de poder me desencontrar para a partir disso, me reencontrar.
Eu vejo uma vida cheia de pessoas assustadas por saber aceitar apenas a ordem. Eu vejo uma vida permeada de bocas abismadas por justamente se enganarem por acreditar na possibilidade absoluta de que os fatos do dia a dia podem ser plenos e perfeitos. O que eu vejo são pessoas incapazes de suportar o choque de valores na convivência com as outras. A intolerância existe porque o caos é negado. Resultado: a tal da diversidade, da inclusão, da relatividade, do amor ao próximo vão rolando por esgotos podres e profundos.
Ninguém mais ama, pois a ordem é sempre a ordem do dia. Ninguém mais ama porque o ato de amar implora que a gente saiba naufragar e se arriscar no caos, pois só nele é que perceberemos o quanto os outros não são nós mesmos. É só com o caos que saberemos o quanto os outros por não serem nós mesmos, vivem experiências múltiplas, mostrando assim, que a vida, apesar da comunicação, dos códigos, das instituições, das regras, enfim, da ordem, sapateia em meio a um chão esburacado e movediço do caos.
Em outras palavras, o fato de não admitirmos o caos em nossas vidas faz com que a gente não aceite as frustrações. Estamos adoecendo demais por sabermos viver apenas com a ordem. Não suportamos sermos nós mesmos, pois queremos o todo igual (bem a cara da ordem), não suportamos admitir para nós mesmos que erramos, que fomos mal educados, estúpidos, pregos, malditos, arrogantes.
O caos vem nos ensinar que somos humanos por sermos cacos que querem se organizar. Mas veja: querem se organizar. Apenas isso. De fato nos organizamos, mas quando achamos que falta apenas mais uma pedra pra finalizarmos nossa casinha protetora de nós, ouvimos os roncos dos trovões, somos banhados por tempestades e voltamos a ter o horizonte infinito e imprevisto das possibilidades como nosso único teto.
Essa nossa escola ocidental tão preocupada com a ordem tem nos tornado medrosos. Não sabemos pensar por nós mesmos. Temos que sempre esperar a resposta de alguém que mitificamos como autoridade para encontrarmos sentidos nas coisas, quando na verdade esse sentido poderia vim de nós mesmos sem precisar do mestre das verdades trepado no topo máximo de uma hierarquia tão admirada pela ordem.
Eu digo: o caos sugere a aventura, e foi de aventuras que a história viveu até agora, pois sem riscos, não haveria alterações em nossos valores, e, portanto, não faríamos histórias. Temos que chutar o pau da barraca sim. Temos que cuspir nas ditas verdades que nos são impostas garganta a dentro mesmo quando não estamos com fome. Temos que sangrar as canelas, ferir nossos joelhos, arrombar os lábios com as quedas sim.
Sabe por que? Mesmo a gente sabendo que o melhor de tudo seria nos acalentar com a previsibilidade da ordem, a vida nos surpreende com suas experiências boas e ruins. Quem quiser aceitar o caos vai sofrer e sorrir do mesmo jeito de quem aceita apenas a ordem, mas há uma diferença: quem aceita o caos, sabe que é humano, e por isso mesmo, não é invencível. Sabe que busca a alegria, mas nem por isso pode ser plenamente feliz.
Enfim, sabe que pode desmontar, desfazer, remontar e reconstruir as coisas, e por isso mesmo, se hoje chora com a putaria imposta pela vida, tem consciência de que pode re-organizar todos os seus afetos, pois é isso que aprendemos com o caos, ou seja, de que nos perdemos para nos desmontar, nos quebrar, nos achar, nos refazer, mas também nos superar.
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
ESCURAS SOMBRAS DO DIA
Elizabete
saiu cedo esta noite. Recordo-me do barulho da porta da sala de estar
quando ela deixou a casa. Depois sobre todos nós veio um estranho e
forte silêncio. O vento da praia soprava pelas janelas trazendo o gemido
das ondas na beira do mar. As velas da sala e da cozinha estavam
acesas. Do lado de fora, um rapaz com cara de sulista descasca uma
laranja com as unhas calmamente. A porta da cozinha batia para lá e para
cá pelo vento que soprava dos fundos. Recordo que voltei para o meu
canto e lá fiquei. Mas, saibam que embora fora do problema, eu o vi
acontecer bem defronte meus olhos.
A
meia noite veio logo. Pensei que era uma brincadeira pueril assustar
uma pessoa com histórias de coisas do outro mundo. Esta meia noite foi
fria e silenciosa. A família se reuniu e todos contaram de si e alguma
novidade. Por isso que fui para meu canto. Não suporto mais quando ele
conta aquelas histórias de lampião. “Nego veio, Lampião matou muita
gente, mas, era um homem bom; esse lado da história o povo não conta”.
De
fato, ele estava velho e cansado. A despeito da velhice e do cansaço
ele estava muito lúcido. Elizabete dissera: “Pai, volto logo, é um
tapa!” O velho coçou a cabeça e disse com voz rouca: “Deus te abençoe,
filha!” Elizabete saiu para visitar uns amigos que moravam do outro lado
da cidade. Eu vi quando ela entrou em um carro preto. Elizabete saiu
com os amigos.
Retornei
para a casa do velho na madrugada. Umas três horas eu ouvi o ronco de
Guilherme. Foi o rapaz da laranja que caiu no sono após ouvir o jogo de
futebol no radio velho. A casa estava solitária. Darci e Pedro dormiam
no chão. Achei muito estranho aquilo. No entanto, o que é que eu tenho a
ver com isso? Não é assunto meu! Andei pela casa até me cansar. Então
sentei em frente à televisão e fiquei vendo os programas.
Repentinamente, eu apaguei, entrei numa viagem mental pelas formas e
cores que fluíam daquela tela...
Eu
estava em Campos de Rio Real. Era época de muita chuva. O mês de julho
entrou molhado. A cidade respirava eleição. Uma grande disputa em Campos
estava ocorrendo. Do lado dos Cabaus, os Ferreiras respondiam; e do
lado dos Pebas, Os Gonçalves davam a última palavra. A briga estava
feita. E Robertinho no meio! Esse era um rapaz de ouro, o único problema
segundo sua namorada era ele ser filho de um Peba, o doutor Aristóteles
– o médico de sua família, como ele gostava de dizer. Amélia amava
Robertinho, e Robertinho amava Amélia.
A
duas famílias não apoiavam o amor deles, por isso eles foram morar em
uma casa de praia para as bandas do mosqueiro. O pequeno sítio tinha
coqueiros, laranja, e até um pé de jaca. A casa era confortável e com
quatro quartos espaçosos com guarda – roupa e todo o conforto. O
problema era que naquela época não tinha luz ali. As velas e candeeiros
iluminavam a casa durante as noites. Por muito tempo aquele foi um lugar
que muita gente boa gostou de visitar.
- Se sente melhor agora? Perguntou ao moço um homem com jaleco branco.
- Claro doutor! Eu parei onde mesmo?
- Deixa para lá, Gumercindo!
-
Mas, olha que moço bonito! Uma senhora de meia idade entra na conversa
subitamente. O estranho rapaz para o diálogo com o médico para examinar a
pessoa diante de seus olhos.
- Ela é quem mesmo? Perguntou o moço quase gaguejando. A mulher olha para o médico com o olhar de desconfiada e desesperança.
- Lamento Deusita, mas, o caso é esse. A senhora de meia idade cujo nome era Deusita deixa médico e paciente a sós de novo.
Eu
me lembro daquele tempo que todos nós sentávamos ao redor da fogueira
para comer milho assado e soltar fogos. Oh, tempo bom meu Deus! Sabe,
Carla era tão bonita, eu me lembro dela. Mas, aposto que ela já casou!
As pessoas são assim, casam e vão embora deixando um pedaço de suas
vidas para trás. As coisas pareciam ser assim com Gumercindo.
-
Seu Gumercindo dá licença! A mulher afro descendente levanta a camisa
do rapaz e injeta uma substância em suas veias. “Pronto!” “Doeu?” “Não
me diga isso!” o homem tornou a falar.
“Bem, eu estava mesmo era me lembrando de Campos quando nós chegamos por aqui”.
- Ele fica assim o dia quase todo.
- E o que é isso doutor?
- É um tipo de esquizofrenia muito delicado.
- Tem jeito?
- Todo mundo fala só, não é?
- É, mas, esse é diferente.
Levaram
Gumercindo para o quarto. A injeção estava fazendo efeito. O pobre
homem foi levado na mesma cadeira que sentava. “Todas as vezes que ele
falar assim compulsivamente aplique nele a mesma quantidade de hoje”.
Calaram Gumercindo novamente. Naquela clínica a paciência era muito
pouca. Sua esposa Deusita o visitava todo final de semana, mas, quando
ele enganchava na conversa, ela se retirava. Ela pediu a clínica para
sedá-lo em situações como essas. Afinal, quem suporta escutar uma
conversa partida?
Gumercindo
adormecendo em seu leito solitário, por um instante, muito breve por
sinal, olha para os lados para ver se alguém o via. Gumercindo
levanta-se da cama e segue em direção ao banheiro. O banheiro era um dos
melhores lugares para o pobre Gumercindo, pois, era um lugar quase seu.
Ele puxa a porta do armário e retira de dentro umas anotações que ele
andava fazendo aquelas noites. O paciente da Clínica Repouso Seguro
folheia seus escritos. Dia 21 de março de 1998:
“Mais
uma vez a segui depois do horário de trabalho; seu telefone foi às
17:58 para me avisar que chegaria por volta das seis da tarde. Ela
estacionou o carro no shopping center e entrou no recinto; me contive
permanecendo no estacionamento; ela logo apareceu; meu Deus eu não
acredito nisso? Isso não é possível; até você Deusita!” Gumercindo lia o
texto e repetia tudo novamente. Ele queria encontrar um nexo lógico
para tudo que vivera, mas, parece que o mundo era agora algo muito
difícil de ser entendido. “Eu digo as pessoas e elas me dizem: ‘É
impossível’” “Será que enlouqueci?” “Acho que devo ir fundo nessa
história”.
De
fato Gumercindo pagou uma investigação privada para esclarecer os fatos
de vez. Em pouco tempo, ele tinha nomes, endereços e horários.
Gumercindo passou a ser a sombra daquela mulher. Ele alugou um quarto no
motel onde ela se encontrava com seu amante. Por uma câmera ele
acompanhava tudo que ela fazia. Depois de um determinado tempo,
Gumercindo percebe que seus pensamentos estavam, digamos, um pouco fora
do usual. Depois as dores de cabeça vieram, e com elas algumas
alucinações.
- Mulher teu marido está louco!
- Que é isso gente!
Deusita internou Gumercindo. Desde então ela vive de sua pensão e de alguns trocados que ela ganha como técnica de informática.
Gumercindo
sai de seu lugar favorito e volta para sua cama. O sono estava tomando
conta dele. O homem nordestino acostumado com uma vida dura para ter
conforto se rendia ao efeito do calmante. Seus olhos se fecham como
janelas de uma casa solitária. O sono se apodera do homem. Seu rosto
mostra as contrações que criam rugas, ora de alegria e prazer, ora de
dor e sofrimento. Sua respiração e os seus batimentos cardíacos
compunham uma sinfonia a parte. O enredo da trama que se desenvolvia em
sua mente; ninguém jamais soube.
Assinar:
Postagens (Atom)