quarta-feira, 10 de abril de 2013
CARTAS PEDAGÓGICAS III
MENTALIDADE CONSTRUÍDA E EDUCAÇÃO
Meu caro Souza,
As condições materiais do ato educativo podem determinar a sua eficiência. Devo dizer que as ações individuais dos agentes em muito podem atenuar a falta desses recursos, no entanto, é fato que o ato educativo precisa das condições necessárias para a sua realização plena. O discurso produzido pelos estudiosos da educação desse país, e os discursos dos educadores, por vezes, não levados a sério nos indicam que as condições materiais onde o ato educativo ocorre são precárias em quase toda a rede publica nacional.
Tomei como inspiração para o meu trabalho algumas observações feitas em uma pesquisa de caso realizada pela ilustre pesquisadora da PUC-Rio Sonia Kramer publicada em um de seus livros em 2010. O presente ensaio não pretende analisar todo o conteúdo da obra, mas, comentar algumas citações do referido estudo da pesquisadora.
Antes de fazer os comentários gostaria de compartilhar com o colega algumas citações do trabalho de José Luiz de Paiva Bello que discorre sobre a história de nossa educação. Fazendo isso, estou dizendo sobre a necessidade de uma mudança de “mente” em nossa sociedade, coisa que acho dependente das mudanças materiais da mesma. A dependência intelectual e tecnológica é na presente realidade nacional um indicativo da mais funesta colonização já realizada em nosso país. Sabemos que esse processo histórico inaugurou-se com a vinda das caravelas, e que aqui se instalou como se essas terras fossem lusitanas. A Igreja exerceu papel fundamental na domesticação do nativo, e posterior inculcação dos arquétipos do sujeito em sujeição, do homem dominado – de nossa brasilidade.
Ao longo dos séculos nossa brasilidade foi forjada a partir dos interesses de uma nação europeia decidida a retirar dessas terras tudo que fosse possível para lhes favorecer riquezas e prestígio em seu continente. Os discursos da Santa Sé se pautavam na necessidade de civilizar e cristianizar os selvícolas, verdadeiros proprietários do Brasil.
O Estado Português em nossas terras não teve a intenção de criar um lugar onde todos os seus moradores gozassem de prosperidade e paz. Esse Estado aqui instaurado era ao lado da Igreja a ordem necessária para que as coisas andassem “nos conformes” de seus interesses mercantilistas.
Posto isso, posso dizer ao amigo que desde Cabral até os dias atuais, a Educação das terras de Cabrália nunca foi levada a sério. A mentalidade nacional é que a educação é coisa que se faz de qualquer jeito. Assim como o anglo-saxônico acredita em sua vocação para salvar o mundo desde os tempos de Beowulf, o cabraliense acredita em sua sujeição como vocação nacional, pois, foi essa a mente constituída pela educação oferecida pelos evangelizadores e educadores de nossos tempos idos. Nossos pais acreditaram nisso e muito provavelmente nossos filhos continuarão a acreditar. Ninguém escapa da força da coerção linguística formadora das mentalidades. Somente a educação libertadora pode fornecer à sociedade as ferramentas necessárias para atuar no atual contexto histórico de nosso país. Será que com isso estou sendo pessimista?
A educação indígena foi interrompida com a chegada dos jesuítas. Os primeiros chegaram ao território brasileiro em março de 1549. Comandados pelo Padre Manoel de Nóbrega, quinze dias após a chegada edificaram a primeira escola elementar brasileira, em Salvador, tendo como mestre o Irmão Vicente Rodrigues, contando apenas 21 anos. Irmão Vicente tornou-se o primeiro professor nos moldes europeus, em terras brasileiras, e durante mais de 50 anos dedicou-se ao ensino e a propagação da fé religiosa. (Bello , 2001)
Ora, meu amigo Souza, se a força semântica de um termo linguístico se materializa no ato discursivo, então, o sentido de nosso ato educativo secular advém de nossos discursos produzidos no bojo social e construtor de nossa mentalidade sobre o tema: “Os pobres são sub-raça (negros, pardos, mestiços majoritariamente, indígenas caboclos etc.), por isso, não precisam conhecer mais do mundo, os ricos que, na sua grande maioria, são branquinhos, e estão mais próximos do modelo lusitano de cidadão, merecem a educação que podem pagar”. Essa é uma mentalidade nacional.
O discurso de uma educação para o “interesse de” produzido principalmente pela casa de Loyola continuou por 210 anos. Não posso negar que embora fosse uma educação “para o interesse de”, ela foi a única que tínhamos e não negarei que os Jesuítas montaram uma estrutura educacional em nosso país e que foram responsáveis pela única forma de obter conhecimento formal em sua época.
Quando os jesuítas chegaram por aqui eles não trouxeram somente a moral, os costumes e a religiosidade européia; trouxeram também os métodos pedagógicos. Este método funcionou absoluto durante 210 anos, de 1549 a 1759, quando uma nova ruptura marca a História da Educação no Brasil: a expulsão dos jesuítas por Marquês de Pombal. Se existia alguma coisa muito bem estruturada em termos de educação o que se viu a seguir foi o mais absoluto caos. Tentou-se as aulas régias, o subsídio literário, mas o caos continuou até que a Família Real, fugindo de Napoleão na Europa, resolve transferir o Reino para o Novo Mundo. (Bello, 2001)
Infelizmente, “a educação para o interesse de” continuou com a vinda da Família Real provocando uma ruptura não no paradigma “para o interesse de”, pelo contrário o que foi feito foi feito para o que “Estado Imperial hospedado em terra de índio” pudesse realizar seus atos. Observe os destaques da citação. O caos citado por Bello é uma referencia ao período pombalino (1760 – 1808) que visava uma educação para a manutenção da situação de colônia – “uma educação para o interesse de”.
Através do alvará de 28 de junho de 1759, ao mesmo tempo em que suprimia as escolas jesuíticas de Portugal e de todas as colônias, Pombal criava as aulas régias de Latim, Grego e Retórica. Criou também a Diretoria de Estudos que só passou a funcionar após o afastamento de Pombal. Cada aula régia era autônoma e isolada, com professor único e uma não se articulava com as outras. Portugal logo percebeu que a educação no Brasil estava estagnada e era preciso oferecer uma solução. Para isso instituiu o "subsídio literário" para manutenção dos ensinos primário e médio. Criado em 1772 o “subsídio” era uma taxação, ou um imposto, que incidia sobre a carne verde, o vinho, o vinagre e a aguardente. Além de exíguo, nunca foi cobrado com regularidade e os professores ficavam longos períodos sem receber vencimentos a espera de uma solução vinda de Portugal. Os professores geralmente não tinham preparação para a função, já que eram improvisados e mal pagos. Eram nomeados por indicação ou sob concordância de bispos e se tornavam "proprietários" vitalícios de suas aulas régias. O resultado da decisão de Pombal foi que, no princípio do século XIX, a educação brasileira estava reduzida a praticamente nada. O sistema jesuítico foi desmantelado e nada que pudesse chegar próximo deles foi organizado para dar continuidade a um trabalho de educação. (Bello, 2001)
Na verdade o que estava previsto para a Metrópole não era o mesmo para as colônias. Pombal entendeu que as colônias precisavam de uma educação de colônia, ou seja, uma educação para a sujeição, que não provocasse mudanças de mentalidade – mudanças nos discursos e como consequência uma nova práxis. Segundo Bello (2001) a situação continua até a chegada do imperador.
Na verdade não se conseguiu implantar um sistema educacional nas terras brasileiras, mas a vinda da Família Real permitiu uma nova ruptura com a situação anterior. Para preparar terreno para sua estadia no Brasil D. João VI abriu Academias Militares, Escolas de Direito e Medicina, a Biblioteca Real, o Jardim Botânico e, sua iniciativa mais marcante em termos de mudança, a Imprensa Régia. Segundo alguns autores o Brasil foi finalmente "descoberto" e a nossa História passou a ter uma complexidade maior. A educação, no entanto, continuou a ter uma importância secundária. Basta ver que, enquanto nas colônias espanholas já existiam muitas universidades, sendo que em 1538 já existia a Universidade de São Domingos e em 1551 a do México e a de Lima, a nossa primeira Universidade só surgiu em 1934, em São Paulo. (Bello, 2001)
É bom destacar que os filhos da elite local tinham sua formação superior em universidades de Portugal e de outros países do continente europeu. O discurso “boa educação” continuava expresso no comportamento das elites, desta forma, infere-se que o discurso não dizia da necessidade de uma educação superior para a massa brasileira. A consequência foi uma colônia passiva e apática às políticas nacionais. Não é por acaso que as mudanças sociais desse país não partem da pressão popular, e sim de setores minoritários que se sentiram incomodados com alguma coisa. Tomemos como exemplo histórico a Proclamação da República que foi objeto de interesses exógenos e domésticos – um novo modelo de produção material. O povo foi um ator passivo, legitimador do interesse desses setores.
A independência do Brasil não trouxe uma mentalidade nova sobre educação como: “Agora vamos andar com nossos pés”. Pelo contrário, os atos de D. Pedro I nos dizem de um discurso de uma educação da mesmice, da manutenção da ordem sócio econômica, mesmo que o país tivesse se tornado em uma nação livre:
D. João VI volta a Portugal em 1821. Em 1822 seu filho D. Pedro I proclama a Independência do Brasil e, em 1824, outorga a primeira Constituição brasileira. O Art. 179 desta Lei Magna dizia que a "instrução primária é gratuita para todos os cidadãos". Em 1823, na tentativa de se suprir a falta de professores institui-se o Método Lancaster, ou do "ensino mútuo", onde um aluno treinado (decurião) ensinava um grupo de dez alunos (decúria) sob a rígida vigilância de um inspetor. Em 1826 um Decreto institui quatro graus de instrução: Pedagogias (escolas primárias), Liceus, Ginásios e Academias. Em 1827 um projeto de lei propõe a criação de pedagogias em todas as cidades e vilas, além de prever o exame na seleção de professores, para nomeação. Propunha ainda a abertura de escolas para meninas. Em 1834 o Ato Adicional à Constituição dispõe que as províncias passariam a ser responsáveis pela administração do ensino primário e secundário. Graças a isso, em 1835, surge a primeira Escola Normal do país, em Niterói. Se houve intenção de bons resultados não foi o que aconteceu, já que, pelas dimensões do país, a educação brasileira perdeu-se mais uma vez, obtendo resultados pífios. Em 1837, onde funcionava o Seminário de São Joaquim, na cidade do Rio de Janeiro, é criado o Colégio Pedro II, com o objetivo de se tornar um modelo pedagógico para o curso secundário. Efetivamente o Colégio Pedro II não conseguiu se organizar até o fim do Império para atingir tal objetivo. Até a Proclamação da República, em 1889 praticamente nada se fez de concreto pela educação brasileira. O Imperador D. Pedro II, quando perguntado que profissão escolheria não fosse Imperador, afirmou que gostaria de ser "mestre-escola". Apesar de sua afeição pessoal pela tarefa educativa, pouco foi feito, em sua gestão, para que se criasse, no Brasil, um sistema educacional. (Bello, 2001)
Meu caro Souza, os dados históricos aqui apresentados são para sustentar minha tese que a voluntas brasileira para a educação pode ser entendida como a epifania do dominador, ou o colonizador falando pela boca do povo. O colega é psicanalista antes de ser educador, e o amigo sabe muito bem que o sujeito reproduz os discursos da maioria de forma inconsciente, assim, a vontade do povo, de certa forma, é que a mesmice continue. Quando um pai de aluno procura o professor para dar um jeitinho na situação de seu filho, esse jeitinho é um sintoma de uma mentalidade constituída historicamente sobre a educação – “a educação rígida e eficaz é para filho de doutor”.
A república trouxe novas ideias e com elas novas expectativas. Contudo no quesito educação a coisa continuou a capengar. Vejamos o discurso sobre educação na primeira fase de nossa republica:
A República proclamada adotou o modelo político americano baseado no sistema presidencialista. Na organização escolar percebe-se influência da filosofia positivista. A Reforma de Benjamin Constant tinha como princípios orientadores a liberdade e laicidade do ensino, como também a gratuidade da escola primária. Estes princípios seguiam a orientação do que estava estipulado na Constituição brasileira. Uma das intenções desta Reforma era transformar o ensino em formador de alunos para os cursos superiores e não apenas preparador. Outra intenção era substituir a predominância literária pela científica. Esta Reforma foi bastante criticada: pelos positivistas, já que não respeitava os princípios pedagógicos de Comte; pelos que defendiam a predominância literária, já que o que ocorreu foi o acréscimo de matérias científicas às tradicionais, tornando o ensino enciclopédico. O Código Epitácio Pessoa, de 1901, inclui a lógica entre as matérias e retira a biologia, a sociologia e a moral, acentuando, assim, a parte literária em detrimento da científica. A Reforma Rivadavia Correa, de 1911, pretendeu que o curso secundário se tornasse formador do cidadão e não como simples promotor a um nível seguinte. Retomando a orientação positivista, prega a liberdade de ensino, entendendo-se como a possibilidade de oferta de ensino que não seja por escolas oficiais, e de frequência. Além disso, prega ainda a abolição do diploma em troca de um certificado de assistência e aproveitamento e transfere os exames de admissão ao ensino superior para as faculdades. Os resultados desta Reforma foram desastrosos para a educação brasileira. Num período complexo da História do Brasil surge a Reforma João Luiz Alves que introduz a cadeira de Moral e Cívica com a intenção de tentar combater os protestos estudantis contra o governo do presidente Arthur Bernardes. (Bello, 2001)
Podemos inferir desse pequeno resumo de Bello (2001) que o Brasil não pensou sua educação, mas, que houve uma importação de teorias e ideias europeias (Método Lancaster, positivismo de Comte). O colega não se assuste, mas, esse discurso que data de 1889 – 1929 ainda existe na fala de muitos colegas nossos, e de muitas escolas espalhadas pelo país. Parece que os fragmentos discursivos se misturam a grande teia discursiva que constitui o nosso inconsciente coletivo – aquele gatilho que aciona nossos atos, e dependendo da historia do sujeito, este ou aquele fragmento, inevitavelmente o influenciará. Não podemos deixar de dizer que nos dias atuais a chamada educação de qualidade ainda visa preparar pessoas para o ensino superior e não para torna-los cidadãos autônomos. Esse discurso é velho, está incubado em camadas mentais sedimentadas ao longo dos tempos, mas, como um vulcão ele pode naturalmente entrar em erupção!
A Revolução de 30 foi o marco referencial para a entrada do Brasil no mundo capitalista de produção. A acumulação de capital, do período anterior, permitiu com que o Brasil pudesse investir no mercado interno e na produção industrial. A nova realidade brasileira passou a exigir uma mão-de-obra especializada e para tal era preciso investir na educação. Sendo assim, em 1930, foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública e, em 1931, o governo provisório sanciona decretos organizando o ensino secundário e as universidades brasileiras ainda inexistentes. Estes Decretos ficaram conhecidos como "Reforma Francisco Campos". Em 1932 um grupo de educadores lança à nação o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, redigido por Fernando de Azevedo e assinado por outros conceituados educadores da época. Em 1934 a nova Constituição (a segunda da República) dispõe, pela primeira vez, que a educação é direito de todos, devendo ser ministrada pela família e pelos Poderes Públicos. Ainda em 1934, por iniciativa do governador Armando Salles Oliveira, foi criada a Universidade de São Paulo. A primeira a ser criada e organizada segundo as normas do Estatuto das Universidades Brasileiras de 1931. Em 1935 o Secretário de Educação do Distrito Federal, Anísio Teixeira, cria a Universidade do Distrito Federal, no atual município do Rio de Janeiro, com uma Faculdade de Educação na qual se situava o Instituto de Educação. (Bello, 2001)
Encontramos aqui um novo velho discurso: “O da adequação a uma nova realidade”. A chamada indústria nacional era importadora de tecnologias estrangeiras e precisava de trabalhadores técnicos para realizar funções específicas. Em virtude das demandas da época cria-se um modelo voltado para o “interesse de”. Mais uma vez, a educação é ferramenta da ordem em vigor e não um meio de construção de um sujeito livre. Veja que as universidades vão surgindo por decretos sem a participação popular. A voz do povo não foi ouvida. Sua fala foi repudiada, pois, o modelo educacional era um monólogo. Esse discurso existe nos dias atuais e está vivo nas nossas LDBs. Dizendo assim, não desconsidero a importância da educação técnica profissionalizante.
A constituição de 1937 é bem explícita quanto à orientação politico-educacional para o mundo capitalista, mas, essa orientação não está voltada para uma emancipação tecnológica e política do país:
Neste sentido a nova Constituição enfatiza o ensino pré-vocacional e profissional. Por outro lado propõe que a arte, a ciência e o ensino sejam livres à iniciativa individual e à associação ou pessoas coletivas públicas e particulares, tirando do Estado o dever da educação. Mantém ainda a gratuidade e a obrigatoriedade do ensino primário Também dispõe como obrigatório o ensino de trabalhos manuais em todas as escolas normais, primárias e secundárias. No contexto político o estabelecimento do Estado Novo, segundo a historiadora Otaíza Romanelli, faz com que as discussões sobre as questões da educação, profundamente ricas no período anterior, entrem "numa espécie de hibernação". [...]. Em 1942, por iniciativa do Ministro Gustavo Capanema são reformados alguns ramos do ensino. Estas Reformas receberam o nome de Leis Orgânicas do Ensino, e são compostas por Decretos-lei que criam o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI e valoriza o ensino profissionalizante. O ensino ficou composto, neste período, por cinco anos de curso primário, quatro de curso ginasial e três de colegial, podendo ser na modalidade clássico ou científico. O ensino colegial perdeu o seu caráter propedêutico , de preparatório para o ensino superior, e passou a se preocupar mais com a formação geral. Apesar dessa divisão do ensino secundário, entre clássico e científico, a predominância recaiu sobre o científico, reunindo cerca de 90% dos alunos do colegial. (Bello, 2001).
A procura pelo ensino técnico se deve ao processo histórico que ocorria na época. O Brasil estava em fase de industrialização e a mão de obra era uma necessidade urgente. O presente ensaio tem mostrado que as reformas educacionais se dão em função das mudanças materiais da sociedade, no entanto, os discursos, ora novos, ora velhos, indicam a permanência de uma situação de desigualdade entre os cidadãos. Essa desigualdade se manifesta nas relações discursivas que mostrarei nos comentários do trabalho de Kramer. Além disso, essas reformas e seus discursos trazem nitidamente a influencia das exigências externas a nossa realidade. O que é externo “o interesse de” se torna o “interesse nosso” por meio dos discursos produzidos pelas sucessivas reformas que espelham os interesses das classes minoritárias de nosso país.
Nos anos 60 gerações de brasileiros são educadas num modelo em que o que mais interessava ao governo era a alfabetização mesmo que o individuo não conseguisse ver o implícito do texto – alfabetizar sem letramento. Inaugura-se no Brasil a educação faz de conta. É uma educação para todos, porem, sem qualidade. A escola publica se mostra como um discurso político de igualdade e ascensão social, mas, sem um projeto efetivo.
Durante a ditadura militar consolida-se a ditadura econômica. Estavam lançadas as bases de uma economia dependente de tecnologias estrangeiras e do capital internacional. O modelo educacional brasileiro se adequa a nova realidade e se inspira nos moldes norte americano MEC –USAID .
Para erradicar o analfabetismo foi criado o Movimento Brasileiro de Alfabetização – MOBRAL, aproveitando-se, em sua didática, do expurgado Método Paulo Freire. O MOBRAL propunha erradicar o analfabetismo no Brasil... Não conseguiu. E, entre denúncias de corrupção, acabou por ser extinto e, no seu lugar criou-se a Fundação Educar. É no período mais cruel da ditadura militar, onde qualquer expressão popular contrária aos interesses do governo era abafada, muitas vezes pela violência física, que é instituída a Lei 5.692, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1971. A característica mais marcante desta Lei era tentar dar a formação educacional um cunho profissionalizante. (Bello, 20010).
Nas décadas que seguem ao processo de instalação do capital internacional, a educação brasileira se adequa as novas necessidades. Isso garantiu emprego para a classe média e o subemprego para as classes menos favorecidas. Nascem, então, no Brasil os graves conflitos sociais sem uma devida interpretação de suas causas. O interesse de profissionalizar a sociedade se deve a necessidade das multinacionais de ter mão de obra local abundante e barata.
Concluindo podemos dizer que a História da Educação Brasileira tem um princípio, meio e fim bem demarcado e facilmente observável. Ela é feita em rupturas marcantes, onde em cada período determinado teve características próprias. A bem da verdade, apesar de toda essa evolução e rupturas inseridas no processo, a educação brasileira não evoluiu muito no que se refere à questão da qualidade. As avaliações, de todos os níveis, estão priorizadas na aprendizagem dos estudantes, embora existam outros critérios. O que podemos notar, por dados oferecidos pelo próprio Ministério da Educação, é que os estudantes não aprendem o que as escolas se propõem a ensinar. Somente uma avaliação realizada em 2002 mostrou que 59% dos estudantes que concluíam a 4ª série do Ensino Fundamental não sabiam ler e escrever. Embora os Parâmetros Curriculares Nacionais estejam sendo usados como norma de ação, nossa educação só teve caráter nacional no período da Educação jesuítica. Após isso o que se presenciou foi o caos e muitas propostas desencontradas que pouco contribuíram para o desenvolvimento da qualidade da educação oferecida. É provável que estejamos próximos de uma nova ruptura. E esperamos que ela venha com propostas desvinculadas do modelo europeu de educação, criando soluções novas em respeito às características brasileiras. Como fizeram os países do bloco conhecidos como Tigres Asiáticos, que buscaram soluções para seu desenvolvimento econômico investindo em educação. Ou como fez Cuba que, por decisão política de governo, erradicou o analfabetismo em apenas um ano e trouxe para a sala de aula todos os cidadãos cubanos. Na evolução da História da Educação brasileira a próxima ruptura precisaria implantar um modelo que fosse único, que atenda às necessidades de nossa população e que seja eficaz. (Bello, 2001).
Meu caro Souza, eu não podia deixar de fazer essas considerações, pois, o presente advém do passado. O presente é o passado em processo. Analisar a educação atual sem entender que nosso país não pensou uma educação para brasileiros, não discutiu essa educação, mas, pelo contrário, usou-a como ferramenta de alienação, para fazer a sociedade crer que suas ações eram legítimas, e que o modelo vigente era a expressão da vontade do povo e quiçá de Deus.
Após essas considerações, me sinto confortável para comentar a pesquisa de caso de nossa colega Kramer. O colega deve ter observado que minha pessoa deixa o interlocutor falar; limito-me a analisar alguns pontos, até mesmo porque, se eu me prendesse a todos os detalhes deveria eu escrever um livro sobre o tema. Bem, o discurso sobre educação nos deu a ilusão que a sociedade sofreria as ações benéficas da mesma. No entanto, vemos que, na pratica, a história é outra. Sonia Kramer fez uma pesquisa para verificar o que todos os educadores já sabiam pela pratica cotidiana – existe uma assimetria entre o discurso e a pratica. Minha tese é que, isso ocorre por questões históricas do povo brasileiro. O sujeito brasileiro internalizou o discurso do dominado e não rompeu esse paradigma refazendo, então, os mesmos modelos que chegaram aqui em 1549. Somente o despertar para uma nova consciência do que realmente seja esse território após a colonização pode nos fornecer uma ideia mais nítida do modelo educacional mais apropriado para o Brasil.
A educação mudou? Avanços foram conquistados? É claro que sim! Eu sou uma testemunha que muita coisa mudou na educação brasileira! Há dez anos as crianças do sertão não podiam ir à escola porque não havia transporte. Seus pais precisavam de sua mão de obra para tocar a roça. Agora, isso é diferente. O Brasil investe na educação, contudo, ela continua ineficaz. Estamos muito abaixo das expectativas internacionais. Vejamos o que diz o senhor Cesar Callegari, presidente do Conselho Nacional do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) para o portal Infonet em Sergipe respondendo a pergunta: “Como o senhor percebe os recursos destinados à educação? Eles atendem à demanda nacional?”
Não. O Brasil investe em educação apenas 1/10 do que os EUA e sete vezes menos que países como Finlândia e Japão. Nosso país investe em educação apenas metade do que o Chile e o México. Além disso, os recursos são mal gerenciados e freqüentemente desviados. Isso faz com que tenhamos baixos indicadores educacionais e ocupemos a 76ª posição no ranking, atrás de países como Argentina e Uruguai. Mas isso tem mudado e vai mudar. Já observamos uma queda na taxa de natalidade que é quase uma taxa europeia, e isso é ótimo para a educação brasileira. Além disso, temos a crescente pressão social em torno de uma educação pública de qualidade, e a recente aprovação da Emenda Constitucional 59, que põe fim a um escandaloso desvio e dá de volta à educação R$ 9 bilhões anuais. Estou convencido que em menos de uma década podemos chegar a um padrão internacional de educação. O Brasil não pode mais se conformar em ser um dos piores do mundo nesse quesito. (fonte: infonet-Se)
A questão não é falta de dinheiro; a questão não é falta de teoria. A questão é a voluntas. Esse tema foi discutido na carta anterior. A vontade pode nascer de uma concepção de mundo. Em termos de educação, a vontade nasce a partir de uma concepção de homem; isso exige um critério antropológico e ético.
Kramer diz em seu livro, “Alfabetização, leitura e escrita: formação de professores em curso”, publicado pela editora ática em 2010:
([...]. No entanto, estamos longe de ter políticas de alfabetização, leitura e escrita para a maioria da população, entendidas como políticas de cultura, capazes de garantir a efetivação do direito de acesso à leitura e à escrita, disseminando a produção existente e assegurando que todos se tornem produtores de escrita.) (Kramer, 2010, p.14)
A pesquisadora produziu um discurso que se repete há séculos e que qualquer educador crítico que tenha passado pela rede publica sabe de cor. Não descredito o trabalho de Kramer, pois, cabe a mesma o mérito da pesquisa, que, aliás, foi muito boa. Kramer observou o desinteresse do Estado em solucionar um problema que nos coloca no 76o lugar no ranking da educação mundial. Somos majoritariamente analfabetos funcionais; nosso povo não entende o que ler e não escreve por causa disso. Essa é uma forma cruel de exclusão social e de sedimentar ainda mais o paradigma “educação para o interesse de”. Um cidadão que não é portador do código escrito e falado de acordo com as exigências das classes superiores está fora da corrida, exceto, se o mesmo partir para a vida autônoma (comercio, vendedor ambulante, etc.).
No que se refere às propostas educacionais, porém, desde alguns anos prédios são construídos, equipamentos são fornecidos, materiais didáticos distribuídos, enquanto a vida educativa contemporânea cada vez mais se distancia daquilo que é efetivamente necessário para que todos tenham acesso à leitura e a escrita. De equívoco em equívoco, vai sendo feita uma educação a distancia, uma educação que se afasta mais e mais dos interesses e das necessidades da maioria da população. (Kramer, 2010, p.14)
Meu amigo Souza, ao ler essa citação minha pessoa lembrou-se do velho Pombal que tentou mudar a educação de seu país e de suas colônias por força de um decreto. O ilustre cidadão lusitano não prestou atenção ao fato de que somente as instituições educativas jesuítas funcionavam; cheio de boa vontade o homem desmantelou todo o sistema secular religioso iniciado em 1549 pelo jovem Vicente Rodrigues – nosso primeiro professor. Pombal queria sair da metafisica e colocar Portugal no contexto do iluminismo, contudo, para as colônias a necessidade seria permanecer na realidade econômica nascida das sesmarias e capitanias hereditária – as fundadoras do clientelismo, do paternalismo, do coronelismo, da dependência intelectual e economica das classes menos favorecidas, das mães de leite, dos padrinhos e madrinhas, dos pistoleiros e seus protetores, das prostituas e seus cafetões, das negras peitudas que abasteciam a elite politica com toda sorte de prazeres enquanto o povo esperava a vontade de Deus. Até os dias atuais, o Brasil, embora república tem um caso mal resolvido com os militares e suas espadas que em um ato mágico, sem a força do povo PROCLAMARAM a república do Brasil. Uma república proclamada, mas, nunca conquistada; e depois de 21 anos de ditadura, os mesmos homens fardados sob uma suposta e duvidosa pressão popular PROCLAMAM A DEMOCRACIA DAS BANANAS, que, aliás, custa caro até hoje, pois, somos nós quem bancamos a conta do Congresso Nacional – parece que é o mais caro do mundo! A citação de Kramer nos faz pensar que a falta de projetos coerentes, os poucos recursos são jogados no ralo, digo, os recursos que escapam da grande massa de comissionados que completam o quadro dos servidores da educação.
Tudo começou em 1549. Foi nesse tempo que os discursos primeiros foram proferidos. Certamente, a Santa Sé dizia: “Vamos educar o selvícola e ele será quase gente; prestará serviços manuais e nos protegerá em casos de invasões”. Kramer, em 2010 encontra-se em um mundo diferente, contudo, no quesito educação, muita coisa não mudou.
[...]. Além disso, quanto à educação regular (e, portanto, às ações dentro da escola), do meu ponto de vista duas são as necessidades fundamentais: 1) salário e condições dignas de vida e trabalho para seus profissionais; 2) projetos de formação permanente – de educação de professores -, concebidos no interior de uma politica cultural sólida e consistente. (Kramer, 2010, p.15)
Kramer clama por uma ruptura no processo; ela clama pela voz do povo como participante importante no processo de transformação nacional. Ela diz: “Uma política sólida e consistente”. Nada será sólido nas transformações sociais se do povo não emanar a força (práxis) transformadora, mas, para tanto, é necessário uma mudança de mentalidade que surge do diálogo possível entre os seres humanos. Nossa capacidade de construir ideologias nos remete a capacidade de desconstruí-las.
[...] na convicção de que assegurar alfabetização, leitura e escrita precisa ser parte de um projeto de sociedade que vise à democracia e a justiça social. Isso requer de um lado, um sólido projeto de desenvolvimento econômico e, de outro, uma politica de emancipação cultural com alternativas desdobradas dentro e fora da escola. (Kramer, 2010, p.14)
Kramer associa a educação eficiente como algo dependente das seguintes variáveis:
- Um projeto de sociedade que vise à democracia e a justiça social. A pesquisadora percebeu que a escola sem a participação da sociedade, ou sem o olhar da sociedade e para a sociedade não funciona. A pedagogia de gabinete tem que acabar; seus mestres devem se envolver como em um trabalho antropológico para a descoberta das realidades que a mídia não se interessa em divulgar. A escola está inserida em um território de conflitos sociais e instabilidade nas instituições. O povo brasileiro, em sua parte majoritária não percebe que vivemos uma guerra fria, invisível, mas, real e cruel onde a cidadania, como em lugar disseram, é de papel.
- Um sólido projeto de desenvolvimento econômico. Aqui, minha humilde pessoa discorda da ilustre pesquisadora. Somos uma das maiores economias do planeta. No entanto, temos a segunda maior concentração de renda do mesmo planeta. Então, o problema não é a falta de sucesso no dinheiro, ou falta de dinheiro, mas, de distribuição de renda, e a aplicação e fiscalização dos recursos investidos na educação. Os modelos colonialistas ainda existem em nossa sociedade que se diz pós - moderna. Nosso povo não entendeu que o desemprego ou o subemprego é uma ameaça à democracia e a estabilidade da ordem social. Se nossa educação tivesse um pouco mais de qualidade, e a distribuição de renda fosse a mesma, certamente, eclodiria um conflito social organizado, mas, a escola que hoje existe não fornece ao individuo subsídios intelectuais para uma práxis subversiva, em vez de uma práxis transformadora e sem violência, instaura-se o segundo estado – o crime organizado. Quem diria que o PCC ou o Comando Vermelho chegaria ao sertão? O caos; silencioso caos de nossa sociedade se espalha como câncer, enquanto isso a sociedade naturaliza a violência como se fosse algo que é “por causa do fim dos tempos”.
- uma política de emancipação cultural. A autora não usou o termo cultura no sentido antropológico. Ao usá-lo ela quer dizer que devemos ter nossa educação; uma educação construída a partir de nossos conflitos e da analise racional dos mesmos. Kramer clama pelo dialogismo, pelo encontro do educador com o educando em relação simétrica.
- o sintagma “dentro e fora da escola” nos remete a uma relação dialógica da escola com seu entorno; numa perspectiva macro, “o fora” seria a realidade socioeconômica nacional, assim, podemos fazer um link com Bourdie quando diz que as variáveis socioeconômicas afetam o desempenho dos alunos na escola, e o pior: Para o sociólogo francês uma sociedade sem capital financeiro tende a não valorizar o capital intelectual. Trocando isso em miúdos: Os pais jogam os filhos na escola, e deles se esquecem, pois, a escola se tornou em “um lugar para deixar meu filho enquanto vou trabalhar ou cuidar de minha vida”.
Ora, meu caro Souza, se no descobrimento, o estado Português adotou o método jesuítico para educar nossos curumins e afastá-los dos ideais protestantes. Preciso dizer o que diz Pilleti para ser justo quanto à importância dos educadores religiosos como o caso de Olinda, por exemplo:
Paralelamente às aulas régias, os estudos continuaram sendo ministrados nos seminários das ordens religiosas. Merece destaque o Seminário de Olinda, criado em 1798 e instalado em 1800 por Dom Azeredo Coutinho, governador interino e bispo de Pernambuco. O seminário de Olinda tornou-se centro de difusão da ideias liberais. Seus alunos e padres participaram de vários movimentos revolucionários, como a Revolução Pernambucana, em 1817, e a Confederação do Equador, de 1824. (Pilleti, 1994, p.37)
No pombalismo trouxeram para cá as ideias iluministas com o intuito de amparar as ideias colonialistas – é um contra – senso. Com D. Pedro era o Método Lancaster; na republica outras teorias e discursões sugiram. Por essa razão, a ilustre pesquisadora nos coloca o seguinte:
Não defendo, em momento algum, um melhor método ou uma teoria supostamente mais correta, capaz de dar conta de alfabetização, leitura e escrita. E não o faço porque não acredito na existência de tal método ou teoria. Ao contrário, quero denunciar o autoritarismo que, em nome de um pretenso conhecimento científico sobre alfabetização, leitura e escrita, nega a pluralidade e o direito de os diferentes professores consolidarem práticas diversas de alfabetização, de leitura e de escrita. (Kramer, 2010, p.17)
Portanto, meu caro Souza, na pena de Sonia Kramer, nós entendemos que o eixo principal de nossa análise sobre educação não deve ser um método milagroso, mas, questionarmos o porquê que os métodos não funcionam aqui. Certamente, nosso dialogismo não terá tanta serventia se as mudanças nas mentalidades não ocorrerem. Sim, meu caro estudioso da alma social, vejamos nós o Kramer encontrou na escola que foi seu objeto. Posso dizer que é o que encontrei ao longo de trinta anos de educação. Limitar-me-ei às referências deixando as inferências para os leitores:
Do ponto de vista de seu funcionamento interno, a escola apresenta os clássicos e crônicos problemas da escola pública: excessivo licenciamento de professoras e merendeiras; constantes faltas consideradas legítimas (três faltas mensais a que os professores tem direito, e das quais todos fazem uso); fragmentação absoluta do trabalho desenvolvido na escola pelos especialistas, principalmente no que diz respeito à supervisão e à orientação educacional; índices muito alto de reprovação. (Kramer, 2010, p.31)
O quadro docente e de funcionários não acreditavam na escola ou entendiam a instituição como algo que apenas está ali. A educação para o pobre não é dever do estado; esse talvez seja o implícito e arquétipo atávico – uma mentalidade.
Ora, o problema se agrava na medida em que as professoras nem se quer se davam conta dessa fragmentação de discursos tão díspares sobre o fazer da escola. A falta de uma proposta pedagógica está no bojo dessa pulverização. Gastando seu tempo e energia, os especialistas prendem-se a casuísmos e tarefas imediatas: dedicam-se muito, mas, sem um fio condutor, sem uma diretriz para o trabalho escolar. (Kramer, 2010, p.31)
E Kramer continua:
Durante o ano letivo de 1985 não se presenciou nenhuma reunião da direção com as professoras e especialistas, nem mesmo dos especialistas com as professoras. (Kramer, 2010, p.31)
Alguém poderia refutar Kramer dizendo que uma escola não prova nada, pois, o Brasil é muito grande. No entanto, minha experiência empírica e leitura sobre o tema me diz que Kramer tem razão. O que mais me entedia numa escola é a reunião pedagógica, pois, é nesse momento que nada se decide na escola. Cada um faz o que quer; como quer, e às vezes, quando quer. Ninguém propõe nada significativo, exceto, contar os dias que serão imprensados nos feriados prolongados. Isso é MENTALIDADE CONSTRUÍDA.
Kramer continua relatando suas descobertas:
Uma das poucas medidas (pedagógicas?) utilizadas com a finalidade de reduzir os altos índices de reprovação foi a dos remanejamentos, em que se procurava alocar as crianças de acordo com o seu rendimento. As professoras apostavam na ideia, não, porém, sem algum receio. É preciso enfatizar, entretanto, que, junto com o remanejamento, não havia nenhuma proposta didático-metodológica alternativa.(Kramer, 2010, p.32)
Remanejar aqui é por o aluno problema junto com os outros e jogá-los na famosa classe dos “Não quero nada”.
no tocante à organização escolar, pode-se concluir, portanto, que há conflitos e confrontos permanentes, tanto entre professoras quanto delas com especialistas e a direção da escola, desta com as professoras, e assim sucessivamente. Nos conflitos existentes entre diferentes níveis hierárquicos, a questão do poder e da autoridade superior prevalece quando há posse de determinadas informações e quando legitimados por uma competência ou experiência anterior. (Kramer, 2010, p.33)
A ingerência política na escola pública produz tensão interna na mesma. “Esse tem as costas largas”.
Como a maioria repete, repetir se tornou natural. “Tive sorte com a turma” explica o sucesso; “não dei sorte”, o fracasso. Não há crítica nem tentativa por parte do corpo técnico de transformar a situação. O fracasso é impune, pois, ninguém é por ele culpado, a não ser o próprio aluno; é contingencia de vida miserável e escola sem recursos. Ninguém se espanta. Crime impune, o fracasso escolar não é discutido, o processo de ensino aprendizagem não é discutido. (Kramer, 2010, p.33,34)
Na verdade, o único lugar que não se discute educação é na escola. Isso minha pessoa já disse a mais de uma década. Podemos então ver que a classe política e a classe docente comungam do mesmo ethos quanto à educação. é uma questão de MENTALIDADE CONSTRUÍDA.
Em síntese, [...], há um clima de conflito constante entre professoras, funcionários da escola e comunidade. No entanto, especificamente nessa escola estudada, um traço característico dessas relações pode ser constatado: Uma grande parte dos especialistas se coloca como se estivesse fazendo um favor às famílias e às professoras – com maior ou menor consciência e intencionalidade -, como ali estando para lhes prestar serviço. (Kramer, 2010, p.36)
A análise dialogista da educação propõe um projeto de pesquisa para a elucidação desse fenômeno: “Como se construiu socialmente essa mentalidade”. Não podemos jogar pedras nas vidraças do MEC sem termos a honestidade de fazermos o mesmo conosco. Para mim, o problema da educação está nos discursos internalizados e produtores de comportamentos; formadores da mentalidade brasileira – a nossa brasilidade.
Referências:
Bello, José Luiz de Paiva: Educação no Brasil: a História das rupturas http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb14.htm
Kramer, Sonia. Alfabetização, leitura e escrita: Formação de professores em curso. São Paulo, Ática, 2010.
MEC-USAID. http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_mec-usaid%20.htm
Recorte infonetehttp://www.infonet.com.br/educacao/ler.asp?id=92215&titulo=especial
Pilleti, Nelson. História da Educação no Brasil. 4aedição, Ática, São Paulo, 1994.
quarta-feira, 3 de abril de 2013
Arte: uma interpretação em pedaços V
Diante de um contexto marcado pela industrialização da arte, ou seja, pela reprodução em série de vários objetos artísticos, fica difícil se definir a arte no sentido mais tradicional do termo, ou seja, como algo vinculado a uma construção marcada pela originalidade do autor. Portanto, a reprodução é arte? Um indivíduo quando consegue reproduzir vários objetos para vendê-los pode ser considerado um artista ou apenas um profissional especializado nas técnicas da reprodução? O uso apenas das técnicas para a construção de um objeto artístico é arte?
Devido a essas questões, eu prefiro discutir a arte não como um objeto produzido, mas na forma como o leitor faz a leitura dela, assim como a finalidade dela. Para isso, acredito que seja importante pensarmos na natureza da arte e da ciência. A arte implica uma forma de expressão que permite ao seu autor agir livremente de acordo com a sua subjetividade. Diferente do discurso científico, o qual necessita comprovar a perspectiva dada pelo autor, na arte, o autor é livre para expressar seu mundo sem que precise comprovar nada acerca de sua expressão.
Não estou dizendo que exista uma distinção absoluta entre a arte e a ciência. Para se haver uma produção científica, nós, mesmo nos preocupando com o caráter da objetividade, inevitavelmente deixamos a marca de nossa subjetividade; como também para se haver a construção artística nós fazemos uso muitas vezes de algumas técnicas. Porém, na arte, o autor não precisa levantar dados para confirmar se o seu ponto de vista confere com as suas hipóteses. No trabalho artístico, o sentido de um autor é livre de qualquer obrigatoriedade comprobatória.
Depois de mostrar algumas diferenças concernentes à arte e à ciência, esclarecendo que a natureza da arte implica na não-necessidade dela em ter o rigor da objetividade da produção científica, cabe agora buscar compreender a relação dela com o leitor. Ao se identificar com uma determina expressão artística, o leitor simplesmente sente saciar suas dores pela forma como o autor conseguiu se expressar na sua obra. Muitas vezes não há explicação racional. A arte provoca as sensações, as percepções, e são essas emoções mais intensas que dão sentido ao leitor.
Nela, o leitor transita livremente no jogo dos seus afetos. É por mexer com os sentimentos mais profundos que a arte simplesmente provoca reações que tangenciam a ordem racional. Por ser fruto das subjetividades, a finalidade da arte e a interpretação do leitor não precisam ser mensuradas. Quanto mais a emoção prolifera de forma espontânea no leitor da arte, mais a expressão artística assume uma relevância. A arte faz com que o leitor possa encontrar uma compreensão de si através das expressões contidas nela, não através das explicações objetivas e comprováveis.
Na arte, o leitor vai buscar encontrar respostas para seus afetos mais profundos por ela ter a capacidade de produzir, não a explicação lógica e racional dos seus afetos, mas sim, a subjetividade e os sentimentos mais intraduzíveis que vagam em sua alma. É por isso que com a arte, o leitor, mesmo encontrando sentidos que fazem com que ele acredite que foram capazes de preencher o seu vazio, ele não se vê capaz de traduzir esse vazio, uma vez que a arte se envolve com um mundo interior intransponível e aquém de qualquer capacidade de decodificação e da logicidade racional.
Portanto, ao invés de discutir a arte enquanto objeto artístico, acho melhor entendê-la enquanto natureza e finalidade dela. Além disso, prefiro pensar na arte a partir da comunicação que o leitor faz dela. Por esse viés, passamos a compreendê-la sem cairmos na discussão de sua validade enquanto industrialização ou enquanto originalidade. A partir dessa ótica, conseguimos visualizá-la como qualquer forma de expressão que não esteja preocupada com resultados objetivos e precisos. Com isso, somos capazes de delinear com mais precisão o que seja arte.
Outros pontos merecem esclarecimentos. Um deles diz respeito ao que eu estou chamando de pedaços e o outro à questão da interpretação. Entretanto, antes de falar sobre eles, eu preciso mostrar a forma como eu encaro o leitor diante da arte. Muito tem se falado acerca da relação entre autor e receptor, porém, não gosto de conceber o leitor como um receptor até por que a recepção traz uma idéia de passividade, de espera, e é justamente isso que eu critico quando o assunto se refere à leitura de uma obra de arte. Prefiro conceber a idéia do receptor como co-criador.
A partir do instante em que o indivíduo se apropria de uma obra de arte e faz uma interpretação dela, antes de apenas reproduzir o sentido original que levou a construção da arte, ele é capaz produzir seu próprio sentido. Daí a necessidade de pensá-lo como um co-criador, uma vez que ele vai recriar e remanejar todos os sentidos dados pelo autor, isto é, vai construir seu próprio mundo na re-elaboração dos significados contidos no discurso de determinados objetos artísticos. Por ser subjetividade, o leitor produz suas próprias interpretações.
Depois de esclarecer sobre minha necessidade de alterar o termo de receptor para co-criador, passarei a falar sobre a idéia que eu tenho de interpretação e de pedaços. Não podemos falar de cultura humana se não pensarmos em transformações. Não podemos pensar em uma cultura na sociedade se não reconhecermos a natureza dinâmica dela, assim como a sua natureza plural proveniente dos diversos contatos produzidos por intermináveis interações entre vários meios sociais, uma vez que a sociedade vive constantemente estabelecendo trocas.
Situados em meio a essa transformação e trocas culturais, os indivíduos inevitavelmente passam por mudanças constantes. Em se tratando de uma cultura global marcada pelo excesso de informação e pela facilidade da comunicação e veiculação dessa informação proveniente de todas as partes do planeta, os indivíduos estão alterando com maior rapidez suas formas de pensar o mundo. Antes dos indivíduos serem totalidades, por se encontrarem inseridos nessa imensa rede de trocas culturais, eles estão sempre em construção e não passam de pedaços deles mesmos.
Aí é onde entra a questão referente à interpretação. Por ser pedaços ao invés de totalidade, na interpretação, o leitor não se apropria de todo o sentido da arte. A interpretação, antes de ser a captação plena de todos os significados, deixa ao longo da leitura vários lapsos, pois o leitor é a sua própria lacuna. A interpretação se desliza pelo fato do olhar de cada um produzir sentidos diferentes em relação aos outros olhares, pois temos que admitir as subjetividades e a própria condição inacabada do leitor em seu constante processo de construção de si.
Além da interpretação não ser total visto que os sujeitos não passam de pedaços deles mesmos, e, portanto, só fazem a leitura da arte de forma parcial e limitada, a interpretação é resultante da forma como cada indivíduo compreende o mundo a partir da influência que ele adquire em suas realidades sociais através das trocas de experiências que estabelece com ela. Em cada realidade, os indivíduos se apropriam de valores, hábitos, olhares, costumes, estéticas de cada meio, adquirindo formas próprias de ver, pensar e agir no mundo compartilhadas coletivamente.
Não estou querendo estabelecer um olhar isolacionista dos meios sociais. Como eu atentei anteriormente, pensar a cultura na sociedade implica em visualizarmos as constantes trocas entre diversos meios sociais. O que eu estou chamando atenção é que, apesar das trocas e das constantes mudanças pelas quais passa a cultura, não podemos deixar de admitir que existam formas próprias de se conceber o mundo em cada realidade social particular. Basta percebermos que em certos meios, é mais comum a aceitação de determinada arte do que em outros.
Não podemos negar que apesar do trânsito e da interação entre diversas formas de cultura, que não existam heranças estéticas, ou seja, formas de se olhar e avaliar determinados valores que são mais comuns em uma realidade social do que em outra, valores que são passados de geração a geração e que terminam fazendo parte de um hábito de determinado meio social. Por isso que eu acho que seria um absurdo afirmarmos que a arte não é reflexo de uma dada realidade. Todos os nossos discursos são projeções dos valores que norteiam certo momento da sociedade.
No entanto, quando o leitor de um determinado meio social interpreta uma arte, devemos ter cuidado em não cobrar dele uma interpretação padronizada, pois esse leitor, ao interpretar uma arte, projeta sua realidade social, além de sua subjetividade. Temos uma mania de reduzir a interpretação de uma arte ao que o autor quis dizer. Isso acontece bastante nos ambientes educacionais. Impomos uma única e “verdadeira” interpretação negando a possibilidade do aluno enquanto leitor, também aprender a criar sua própria interpretação.
Insistir em uma única forma interpretativa para arte implica em querermos diluir os sonhos, as angústias, os medos, as subjetividades do leitor, assim como suas concepções construídas em seu meio social em um modelo padronizado. Entretanto, esse modelo não existe. A sociedade é composta por uma infinidade de grupos sociais e cada indivíduo tem sua própria forma de interpretar o mundo. Aceitar a liberdade de se produzir o sentido de uma arte, é permitir a convivência com a diversidade coletiva e estimular o senso de criatividade e imaginação do leitor.
Reconhecermos a diversidade cultural implica em repensarmos nossas intolerâncias. Quanto à criatividade e à imaginação, temos que convir que a educação que busca estratégias para que seus alunos reconheçam suas capacidades críticas e independentes, é uma educação que promove um aluno mais autônomo acerca das coisas. Um dos problemas que eu verifico em nossa sociedade, é a perpetuação do paternalismo, ou seja, a idéia de que um manda e o outro obedece. No caso da interpretação da arte, esse paternalismo é detectável na relação entre autor e leitor.
Quando estimulamos o aluno a conceber a idéia de que existe apenas uma interpretação “correta”, ou seja, que qualquer interpretação que não esteja condizente com as intenções contextuais e subjetivas do autor são consideradas “erradas”, o que estamos provocando é a perpetuação de pessoas que, ao invés de exercitarem seu senso crítico, isto é, sua própria forma de construir o seu olhar sobre o mundo, ficam reduzidas a uma passividade, à espera de uma verdade. Ficar nessa espera enquanto efeito político, não é nada saudável para a sociedade.
Por que não é saudável? Ora, o que mais verificamos em nosso dia a dia são pessoas que, apesar de criticarem as falhas existentes no sistema, por exemplo, são incapazes de reivindicarem, ou seja, de se mobilizarem para que essas falhas sejam re-solucionadas. O que mais detectamos são pessoas que não participam, nem se informam acerca das decisões das políticas públicas. São pessoas que têm medo de enfrentar o poder. Esse medo é fruto da passividade e dessa cultura da aceitação que fazemos acerca daqueles que assumem a função da autoridade.
Além de termos medo por não aprendermos a ter a liberdade de expressar nossa própria opinião, por apenas esperarmos aqueles que assumem o papel da autoridade, nos esquivamos das nossas próprias responsabilidades, jogando-as para o outro. Essa idéia de apenas comprometermos os outros, além de alimentar nossa covardia para a reivindicação, nos mantêm com nosso infantilismo por não sermos capazes de admitir as conseqüências de nossas escolhas, reduzindo problemas que são provenientes de uma coletividade unicamente ao outro.
Quando se tecem críticas acerca do consumidor da cultura de massa, nos esquecemos que esse consumidor muitas vezes se coloca diante dessa cultura de forma alienada, não apenas devido ao mercado, mas sim, devido à dificuldade que ele tem tido para se reconhecer enquanto subjetividade. Se houvesse um exercício em nossa cultura de estimular aos indivíduos a liberdade deles produzirem sua própria interpretação e seus sentidos, não haveria tanta gente passivamente à espera da música do momento e preocupada com a opinião pública.
É importante que o indivíduo reconheça a importância de seu próprio olhar. É pertinente que ele reconquiste a sua subjetividade. Porém, é imprescindível que seja rompida essa idéia de autoridade inquestionável que é infiltrada nele, seja na educação, na família, na arte, nas políticas públicas, etc. O importante é fazer o indivíduo perceber que ele tem opiniões acerca das coisas e que ele é capaz de construir e reconstruir essas opiniões. Devemos semear a liberdade dele em criar, produzir sentidos, construir suas próprias interpretações acerca das coisas.
Exemplo: eu posso enquanto professor de sociologia, apresentar aos meus alunos a música “Roda Viva” de Chico Buarque. Porém, eu não preciso resumir a canção a um significado apenas e não aceitar outra interpretação que não seja apenas essa. Eu posso pedir a cada aluno que dê a sua interpretação e depois de construída essa interpretação, eu posso propor a eles que articulem o sentido dado por eles com conceitos trabalhados em sala. Depois eu mostrarei, articulando com os conceitos, quais os contextos históricos, sociais e políticos que levaram a construção dessa música.
Além de eu respeitar a subjetividade dos alunos e as concepções de mundo provenientes de suas experiências sociais responsáveis por essa construção da subjetividade, eu promovo a liberdade interpretativa, sem contar a capacidade criativa dos discentes e o olhar crítico deles por fazer com que eles articulem os conceitos trabalhados em sala de aula com suas interpretações. Porém, eu não deixo apenas os sentidos produzidos individualmente serem válidos, pois também recorro ao esclarecimento acerca do contexto no qual foi produzida a arte.
Portanto, não é que eu ache que o educador não deva apresentar uma obra de arte para o aluno sem contextualizá-la. Entretanto, isso não significa que essa contextualização seja motivo para que a arte fique reduzida a uma única interpretação e ao que é certo e errado. O educador também deve motivar o aluno a elaborar sua própria interpretação para que ele também possa produzir um olhar crítico e autônomo e seja capaz de se reconhecer como subjetividade, ou seja, produtor do conhecimento, e não apenas como um receptor desse conhecimento.
Devido a essas questões, eu prefiro discutir a arte não como um objeto produzido, mas na forma como o leitor faz a leitura dela, assim como a finalidade dela. Para isso, acredito que seja importante pensarmos na natureza da arte e da ciência. A arte implica uma forma de expressão que permite ao seu autor agir livremente de acordo com a sua subjetividade. Diferente do discurso científico, o qual necessita comprovar a perspectiva dada pelo autor, na arte, o autor é livre para expressar seu mundo sem que precise comprovar nada acerca de sua expressão.
Não estou dizendo que exista uma distinção absoluta entre a arte e a ciência. Para se haver uma produção científica, nós, mesmo nos preocupando com o caráter da objetividade, inevitavelmente deixamos a marca de nossa subjetividade; como também para se haver a construção artística nós fazemos uso muitas vezes de algumas técnicas. Porém, na arte, o autor não precisa levantar dados para confirmar se o seu ponto de vista confere com as suas hipóteses. No trabalho artístico, o sentido de um autor é livre de qualquer obrigatoriedade comprobatória.
Depois de mostrar algumas diferenças concernentes à arte e à ciência, esclarecendo que a natureza da arte implica na não-necessidade dela em ter o rigor da objetividade da produção científica, cabe agora buscar compreender a relação dela com o leitor. Ao se identificar com uma determina expressão artística, o leitor simplesmente sente saciar suas dores pela forma como o autor conseguiu se expressar na sua obra. Muitas vezes não há explicação racional. A arte provoca as sensações, as percepções, e são essas emoções mais intensas que dão sentido ao leitor.
Nela, o leitor transita livremente no jogo dos seus afetos. É por mexer com os sentimentos mais profundos que a arte simplesmente provoca reações que tangenciam a ordem racional. Por ser fruto das subjetividades, a finalidade da arte e a interpretação do leitor não precisam ser mensuradas. Quanto mais a emoção prolifera de forma espontânea no leitor da arte, mais a expressão artística assume uma relevância. A arte faz com que o leitor possa encontrar uma compreensão de si através das expressões contidas nela, não através das explicações objetivas e comprováveis.
Na arte, o leitor vai buscar encontrar respostas para seus afetos mais profundos por ela ter a capacidade de produzir, não a explicação lógica e racional dos seus afetos, mas sim, a subjetividade e os sentimentos mais intraduzíveis que vagam em sua alma. É por isso que com a arte, o leitor, mesmo encontrando sentidos que fazem com que ele acredite que foram capazes de preencher o seu vazio, ele não se vê capaz de traduzir esse vazio, uma vez que a arte se envolve com um mundo interior intransponível e aquém de qualquer capacidade de decodificação e da logicidade racional.
Portanto, ao invés de discutir a arte enquanto objeto artístico, acho melhor entendê-la enquanto natureza e finalidade dela. Além disso, prefiro pensar na arte a partir da comunicação que o leitor faz dela. Por esse viés, passamos a compreendê-la sem cairmos na discussão de sua validade enquanto industrialização ou enquanto originalidade. A partir dessa ótica, conseguimos visualizá-la como qualquer forma de expressão que não esteja preocupada com resultados objetivos e precisos. Com isso, somos capazes de delinear com mais precisão o que seja arte.
Outros pontos merecem esclarecimentos. Um deles diz respeito ao que eu estou chamando de pedaços e o outro à questão da interpretação. Entretanto, antes de falar sobre eles, eu preciso mostrar a forma como eu encaro o leitor diante da arte. Muito tem se falado acerca da relação entre autor e receptor, porém, não gosto de conceber o leitor como um receptor até por que a recepção traz uma idéia de passividade, de espera, e é justamente isso que eu critico quando o assunto se refere à leitura de uma obra de arte. Prefiro conceber a idéia do receptor como co-criador.
A partir do instante em que o indivíduo se apropria de uma obra de arte e faz uma interpretação dela, antes de apenas reproduzir o sentido original que levou a construção da arte, ele é capaz produzir seu próprio sentido. Daí a necessidade de pensá-lo como um co-criador, uma vez que ele vai recriar e remanejar todos os sentidos dados pelo autor, isto é, vai construir seu próprio mundo na re-elaboração dos significados contidos no discurso de determinados objetos artísticos. Por ser subjetividade, o leitor produz suas próprias interpretações.
Depois de esclarecer sobre minha necessidade de alterar o termo de receptor para co-criador, passarei a falar sobre a idéia que eu tenho de interpretação e de pedaços. Não podemos falar de cultura humana se não pensarmos em transformações. Não podemos pensar em uma cultura na sociedade se não reconhecermos a natureza dinâmica dela, assim como a sua natureza plural proveniente dos diversos contatos produzidos por intermináveis interações entre vários meios sociais, uma vez que a sociedade vive constantemente estabelecendo trocas.
Situados em meio a essa transformação e trocas culturais, os indivíduos inevitavelmente passam por mudanças constantes. Em se tratando de uma cultura global marcada pelo excesso de informação e pela facilidade da comunicação e veiculação dessa informação proveniente de todas as partes do planeta, os indivíduos estão alterando com maior rapidez suas formas de pensar o mundo. Antes dos indivíduos serem totalidades, por se encontrarem inseridos nessa imensa rede de trocas culturais, eles estão sempre em construção e não passam de pedaços deles mesmos.
Aí é onde entra a questão referente à interpretação. Por ser pedaços ao invés de totalidade, na interpretação, o leitor não se apropria de todo o sentido da arte. A interpretação, antes de ser a captação plena de todos os significados, deixa ao longo da leitura vários lapsos, pois o leitor é a sua própria lacuna. A interpretação se desliza pelo fato do olhar de cada um produzir sentidos diferentes em relação aos outros olhares, pois temos que admitir as subjetividades e a própria condição inacabada do leitor em seu constante processo de construção de si.
Além da interpretação não ser total visto que os sujeitos não passam de pedaços deles mesmos, e, portanto, só fazem a leitura da arte de forma parcial e limitada, a interpretação é resultante da forma como cada indivíduo compreende o mundo a partir da influência que ele adquire em suas realidades sociais através das trocas de experiências que estabelece com ela. Em cada realidade, os indivíduos se apropriam de valores, hábitos, olhares, costumes, estéticas de cada meio, adquirindo formas próprias de ver, pensar e agir no mundo compartilhadas coletivamente.
Não estou querendo estabelecer um olhar isolacionista dos meios sociais. Como eu atentei anteriormente, pensar a cultura na sociedade implica em visualizarmos as constantes trocas entre diversos meios sociais. O que eu estou chamando atenção é que, apesar das trocas e das constantes mudanças pelas quais passa a cultura, não podemos deixar de admitir que existam formas próprias de se conceber o mundo em cada realidade social particular. Basta percebermos que em certos meios, é mais comum a aceitação de determinada arte do que em outros.
Não podemos negar que apesar do trânsito e da interação entre diversas formas de cultura, que não existam heranças estéticas, ou seja, formas de se olhar e avaliar determinados valores que são mais comuns em uma realidade social do que em outra, valores que são passados de geração a geração e que terminam fazendo parte de um hábito de determinado meio social. Por isso que eu acho que seria um absurdo afirmarmos que a arte não é reflexo de uma dada realidade. Todos os nossos discursos são projeções dos valores que norteiam certo momento da sociedade.
No entanto, quando o leitor de um determinado meio social interpreta uma arte, devemos ter cuidado em não cobrar dele uma interpretação padronizada, pois esse leitor, ao interpretar uma arte, projeta sua realidade social, além de sua subjetividade. Temos uma mania de reduzir a interpretação de uma arte ao que o autor quis dizer. Isso acontece bastante nos ambientes educacionais. Impomos uma única e “verdadeira” interpretação negando a possibilidade do aluno enquanto leitor, também aprender a criar sua própria interpretação.
Insistir em uma única forma interpretativa para arte implica em querermos diluir os sonhos, as angústias, os medos, as subjetividades do leitor, assim como suas concepções construídas em seu meio social em um modelo padronizado. Entretanto, esse modelo não existe. A sociedade é composta por uma infinidade de grupos sociais e cada indivíduo tem sua própria forma de interpretar o mundo. Aceitar a liberdade de se produzir o sentido de uma arte, é permitir a convivência com a diversidade coletiva e estimular o senso de criatividade e imaginação do leitor.
Reconhecermos a diversidade cultural implica em repensarmos nossas intolerâncias. Quanto à criatividade e à imaginação, temos que convir que a educação que busca estratégias para que seus alunos reconheçam suas capacidades críticas e independentes, é uma educação que promove um aluno mais autônomo acerca das coisas. Um dos problemas que eu verifico em nossa sociedade, é a perpetuação do paternalismo, ou seja, a idéia de que um manda e o outro obedece. No caso da interpretação da arte, esse paternalismo é detectável na relação entre autor e leitor.
Quando estimulamos o aluno a conceber a idéia de que existe apenas uma interpretação “correta”, ou seja, que qualquer interpretação que não esteja condizente com as intenções contextuais e subjetivas do autor são consideradas “erradas”, o que estamos provocando é a perpetuação de pessoas que, ao invés de exercitarem seu senso crítico, isto é, sua própria forma de construir o seu olhar sobre o mundo, ficam reduzidas a uma passividade, à espera de uma verdade. Ficar nessa espera enquanto efeito político, não é nada saudável para a sociedade.
Por que não é saudável? Ora, o que mais verificamos em nosso dia a dia são pessoas que, apesar de criticarem as falhas existentes no sistema, por exemplo, são incapazes de reivindicarem, ou seja, de se mobilizarem para que essas falhas sejam re-solucionadas. O que mais detectamos são pessoas que não participam, nem se informam acerca das decisões das políticas públicas. São pessoas que têm medo de enfrentar o poder. Esse medo é fruto da passividade e dessa cultura da aceitação que fazemos acerca daqueles que assumem a função da autoridade.
Além de termos medo por não aprendermos a ter a liberdade de expressar nossa própria opinião, por apenas esperarmos aqueles que assumem o papel da autoridade, nos esquivamos das nossas próprias responsabilidades, jogando-as para o outro. Essa idéia de apenas comprometermos os outros, além de alimentar nossa covardia para a reivindicação, nos mantêm com nosso infantilismo por não sermos capazes de admitir as conseqüências de nossas escolhas, reduzindo problemas que são provenientes de uma coletividade unicamente ao outro.
Quando se tecem críticas acerca do consumidor da cultura de massa, nos esquecemos que esse consumidor muitas vezes se coloca diante dessa cultura de forma alienada, não apenas devido ao mercado, mas sim, devido à dificuldade que ele tem tido para se reconhecer enquanto subjetividade. Se houvesse um exercício em nossa cultura de estimular aos indivíduos a liberdade deles produzirem sua própria interpretação e seus sentidos, não haveria tanta gente passivamente à espera da música do momento e preocupada com a opinião pública.
É importante que o indivíduo reconheça a importância de seu próprio olhar. É pertinente que ele reconquiste a sua subjetividade. Porém, é imprescindível que seja rompida essa idéia de autoridade inquestionável que é infiltrada nele, seja na educação, na família, na arte, nas políticas públicas, etc. O importante é fazer o indivíduo perceber que ele tem opiniões acerca das coisas e que ele é capaz de construir e reconstruir essas opiniões. Devemos semear a liberdade dele em criar, produzir sentidos, construir suas próprias interpretações acerca das coisas.
Exemplo: eu posso enquanto professor de sociologia, apresentar aos meus alunos a música “Roda Viva” de Chico Buarque. Porém, eu não preciso resumir a canção a um significado apenas e não aceitar outra interpretação que não seja apenas essa. Eu posso pedir a cada aluno que dê a sua interpretação e depois de construída essa interpretação, eu posso propor a eles que articulem o sentido dado por eles com conceitos trabalhados em sala. Depois eu mostrarei, articulando com os conceitos, quais os contextos históricos, sociais e políticos que levaram a construção dessa música.
Além de eu respeitar a subjetividade dos alunos e as concepções de mundo provenientes de suas experiências sociais responsáveis por essa construção da subjetividade, eu promovo a liberdade interpretativa, sem contar a capacidade criativa dos discentes e o olhar crítico deles por fazer com que eles articulem os conceitos trabalhados em sala de aula com suas interpretações. Porém, eu não deixo apenas os sentidos produzidos individualmente serem válidos, pois também recorro ao esclarecimento acerca do contexto no qual foi produzida a arte.
Portanto, não é que eu ache que o educador não deva apresentar uma obra de arte para o aluno sem contextualizá-la. Entretanto, isso não significa que essa contextualização seja motivo para que a arte fique reduzida a uma única interpretação e ao que é certo e errado. O educador também deve motivar o aluno a elaborar sua própria interpretação para que ele também possa produzir um olhar crítico e autônomo e seja capaz de se reconhecer como subjetividade, ou seja, produtor do conhecimento, e não apenas como um receptor desse conhecimento.
Indicadores:
arte,
autoridade,
criatividade,
cultura,
interpretação,
liberdade,
meios sociais,
paternalismo,
subjetividade,
transformação,
trocas,
Vina Torto
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