domingo, 8 de agosto de 2010

Código Florestal para quem? (Por Daniella Vinha)

Há tempos, os murmúrios de uma possível reformulação do Código Florestal brasileiro vêm assombrando uma pequena parcela da população nacional. De um lado, uma bancada ruralista com interesses pessoais escondidos atrás do lema de ampliação da extensão de terras para a agricultura, levantando a bandeira de que o país precisa intensificar a produção de alimentos e não há mais terras disponíveis para isso. Do outro, uma bancada de cientistas um tanto satisfeitos com o Código Florestal que, além de belíssima lei envolta por princípios éticos, favorece o desenvolvimento de suas ações na conservação da natureza, já que os ruralistas são obrigados a recompor a vegetação devastada por séculos de desenvolvimento.
Não se justifica a ação impensada e mergulhada no moralismo dos ditos ruralistas. De fato, o país tem cientistas e instituições de pesquisa reconhecidamente capazes de dar o parecer sobre o devaneio moral desses sujeitos. A biotecnologia, as técnicas de aumento de produtividade do solo, os sistemas agroflorestais, entre outros, são provas de que é possível produzir muito mais e ainda conservar o pouco de florestas que nos restam. Por que então, a comunidade científica não foi fortemente consultada e considerada na pauta de reformulação da bela lei?
Interesses contrários fazem parte da história da humanidade e representam pontos de fragilidade nos quais ganham, na maioria das vezes, aqueles que detêm o poder. Numa sociedade civilizada, bons argumentos podem ser a única maneira de barrar tais processos apolíticos. Entretanto, compreender que a perda substancial de vegetação e, consequentemente, da biodiversidade é um contrasenso em tempos de mudanças climáticas, só tem sentido vindo de fora para dentro. É uma sábia atitude, digna de alimentar o brio e o orgulho ambientalista, comunicar a sociedade internacional sobre o risco de retrocesso ambiental a que o Brasil está sujeito, principalmente após nosso presidente ter anunciado, na reunião de Copenhague, a meta de redução de 37% das emissões de carbono até 2020. Mas como rebater o argumento do aumento da produção agrícola nacional e ao mesmo tempo ouvir o presidente da Câmara dos Deputados dizer que o Brasil é o único país no mundo em que a lei obriga o produtor rural a ter uma reserva legal e a vegetar as áreas de mananciais?
Ao ler a carta enviada para a revista Science, um cidadão europeu informado provavelmente se preocuparia com o aquecimento global, já que o Brasil polui por queimar florestas. Mais do que isso, a estimativa de perda de 100 mil espécies em função de uma única canetada na lei, é um disparate e verdadeiro descaso. Já um típico cidadão brasileiro, sequer saberia o que é o código florestal e, diga-se de passagem, muitos acadêmicos das áreas ambientais não sabem. O pobre cidadão trabalhador das casas Bahia, ou de qualquer outro trabalho comum e digno que seja, não saberia sequer racionalizar o número cem mil, já que cem reais em seu bolso para gastar com suas necessidades e ainda sobrar um trocado não passa de mera fantasia. Racionalizar esse número em espécies? Piorou! Se conseguir reconhecer duas dúzias delas ao seu redor, o ato é digno de nota. Entretanto, as dívidas mensais de sua moradia popular são a mais pura realidade. Mas o que o trabalhador das casas Bahia tem a ver com isso? É simples. Um cidadão amoral, aqui entendido como aquele desprovido de um conjunto de valores estabelecidos por uma sociedade é o mesmo sujeito que alimenta o moralismo. Sim, porque o moralista só consegue deliberar sobre o sujeito desprovido de moralidade. Para um simples e digno cidadão brasileiro, entender que a perda de diversidade biológica afetaria sua vida é algo um tanto desconectado de sua realidade. Ao contrário, entender que a expansão da agricultura pode gerar mais desenvolvimento, mais trabalho e ainda redução no preço da sua conta de supermercado, representa melhores condições para o pagamento de suas dívidas. É essa a lógica. A lógica da oralidade e do imediatismo.
O ato tão assombroso da reformulação da lei chegou, finalmente, à pauta de discussão na qual as forças contrárias se confrontam. Ela claramente mostra o cenário da suposta democracia de um país que tenta ser democrático. Mais, ainda além. Se as decisões políticas não são as decisões do povo, nem mesmo da sociedade intelectualizada, em parte, isso também é responsabilidade das instâncias acadêmicas. É extremamente relevante conservar a biodiversidade, mas isso do ponto de vista científico. Tão verdade que é praticamente impossível conceituá-la rapidamente e, ao mesmo tempo, explicar como sua redução afeta a sobrevivência do homem, dada a sua complexidade. A biodiversidade fica entendida, no senso comum, meramente como a diversidade de espécies, enfraquecendo o argumento da discussão. Por outro lado, é mais forte debater sobre o assoreamento de rios, perda de solo por erosão e conseqüências para a matriz energética do país, já que do ponto de vista do cidadão trabalhador, o que é mais útil é informá-lo de que suas contas de água e energia elétrica sofrerão um imenso reajuste percentual se as florestas forem derrubadas.

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