OLHO D’ÁGUA
Nunca se sabe o que a mata fechada pode esconder. As terras do Ceará nas proximidades de Baturité tinham matas densas há muitos anos atrás. Lá viviam índios que conheciam a estória do Cruzeiro de Prata. Um cacique chamado Tupynajé os contou que o santo havia sido crucificado: “Meus olhos viram quando meteram a lança Nele”. Tupynajé era um índio Tubaguassu, um puro descendente da raça vermelha. Seu guardião chamava-se Urubatã. Um guerreiro da mesma raça em estado de aprendizagem. Tupynajé fora visitar aquelas terras porque diziam que ali havia um mago negro, um Ishu chamado Fronteira. Senhor Fronteira, como era conhecido pelas pessoas; fazia muito mal a comunidade e não obedecia a ninguém. Ele era um bruxo do mal. O cujo morava em uma loca no alto da serra. Ninguém ousava subir lá. Às vezes, o cume da serra ficava todo coberto de nuvens escuras; os índios prendiam suas crianças em suas ocas com medo da “coisa” ruim. Não se sabe como ele foi parar lá, mas existe uma lenda que dizia “que um dia, em Baturité, dois grandes feiticeiros se encontrariam”. Tupynajé chegou à Baturité numa brisa do mar, muito suave por sinal, seu guardião preferiu um redemoinho no sentido anti-horário. Ambos foram recebidos pelos Pajés da região com muita fé, embora o povo encarnado nada visse e muitos duvidassem do velho Anuaacã. Esse era o Pajé mais velho da região e conheceu o Cacique Tupynajé na intuição de seu espírito santificado. No mesmo dia de sua chegada, Tupynajé participaria da reunião do Conselho que seria realizada à noite, logo ao escurecer. As mulheres não podiam ir. Somente os homens casados tomavam parte.
Foi em uma noite de lua cheia que Tupynajé falou pela primeira vez no Ceará. O Conselho estava todo reunido. Todos fumavam e cantavam canções que pareciam mantras invocando os sábios conselheiros da Jurema Sagrada. “Rum, rum, rum, rum”. O som era ritmado e muito repetitivo, às vezes dava, até, para deixar a pessoa tonta. O Cacique Araruna tomou lugar na reunião, e assim todos foram chegando um a um: Cacique Pacatuba, Montanha Negra, Cobra Coral, Sete Conchas, etc. A reunião estava formada sob a liderança do Cacique Anuaacã.
-Meus irmãos, nossos ancestrais estão conosco, podemos começar a falança. Disse o velho Pajé Anuaacã.
O jovem guerreiro Chifre de Boi tomou a palavra.
- Salve os ancestrais, salve meus irmãos reunidos neste lugar de honra. Entendo que a situação é grave. Por isso acho que devemos partir em grupos até o alto da serra e ver de perto com quem estamos lidando.
Outro guerreiro, mais prudente, externou o desejo de ouvir primeiro os mais velhos. Isto foi muito bem recebido por todos. Pediram, então que Anuaacã dissesse o que achava do caso. Neste mesmo instante Tupynajé aproxima-se do Pajé.
- Meus caros irmãos, é com muita honra que me sento nesta roda para falar-lhes pela primeira vez. Já testemunhei muitas pelejas. Perdi batalhas e ganhei outras. Entendo o temor de todos. Mas, acredito que Zambi deve ter algo para fazer aqui. O mistério que envolve o caso, e que os videntes não enxergam seus detalhes, ou sua origem, aponta para algo oculto ao olhar do encarnado e dentro dos limites do mesmo. Vossas lanças, e vossas flechas de nada adiantarão desta vez.
Houve um tumulto entre os homens. Eles até então acreditavam que a coisa era uma questão de luta, de guerra. Alguém matar alguém para se livrar de algo.
- Com todo respeito grande Pajé, mas não devemos deixar mulheres e crianças desprotegidas esperando que um espírito nos diga o que fazer. Disse o guerreiro Onça Pintada.
Enquanto o grupo discutia entre si sobre o que fazer. No meio de uma grande falança e fumaça de cachimbo, entra a presença astral de Urubatã. Um Pajé de Sergipe muito conhecido em sua região inspirou-se e disse:
- Calem-se carne e ossos! Quem são vocês para questionarem a palavra do grande Tupynajé? Vocês já subiram o alto do monte e enfrentaram a coisa? E com que armas o enfrentarão, se nem menos sabem quem é ele?
Todo o conselho se calou. O silêncio era muito grande. As pessoas podiam escutar a som da mata bem claro. Urubatã retomou a palavra e disse:
- Eu, mesmo irei lá, e verei quem é que perturba este arraial. Um grande redemoinho surgiu do nada, e o guardião foi em busca de respostas.
Enquanto isso no alto da serra havia outra reunião. Ishu e seus guerreiros discutiam o que fazer para dizimar a aldeia que os incomodava devido o culto as forças do bem. O povo do Pé da serra era pacato, e viviam da caça e da pesca. As mulheres trabalhavam muito plantando frutas, mandioca e outras coisas. O povo não gostava de briga, e só havia lutas quando alguém invadia o lugar. Ishu falava aos seus sacis para não terem piedade. Estes seres, servos de Ishu eram criaturas de uma perna só, a esquerda, o pé deles era muito grande cerca de 40 cm, usavam armas espirituais muito avançadas para entidades tão atrasadas na escala astral, e seus corpos vermelhos como sangue os protegiam das armas astrais de muitos magos brancos.
- Salve o Rei Ishu Fronteira! Disse o Saci Macambira.
- Salve! Todos os outros responderam empunhando suas armas.
Embora tivessem uma perna só, tinham duas mãos, uma era para o cachimbo, e a outra para a lança inflamada. Eles podiam causar doenças e pestes várias. A cuspida de um saci era o bastante para um mortal cair de cama, ou melhor, de rede. Do alto de uma mangueira Urubatã via e ouvia tudo. Havia um círculo no arraial dos sacis. Este círculo possuía linhas raiadas concêntricas e Ishu se posicionara no centro para fazer a invocação olhando a grandeza da lua.
- Agora, meu divino mestre, senhor das trevas e de toda maldade invoco sua proteção para minhas legiões que partem em breve para a batalha. Já sei que um guerreiro vindo das grandes águas está com eles. Mas, conheço o vosso poder e este será apenas mais um a cair no campo de batalha.
Todos caíram em um estado de transe e gritaram tão alto que o povo da aldeia lá embaixo correu assustado para suas ocas. Uns diziam: “É o bode preto!”
Tupynajé estava calmo, e ficou aguardando a volta de Urubatã. Este retornou por volta das nove horas. Em nada modificara seu rosto. Estava como sempre, com cara de zangado. “Chefe o povo da montanha decidiu invadir esta pobre aldeia. Devo voltar e eliminar a todos?”
- Não. Disse o sábio cacique-pajé. Deixe a natureza seguir seu curso.
Tupynajé foi à beira do rio e com a ponta do seu dedo direito fez um pequeno redemoinho na água e disse: “Acorda Oxumaré!” Segundos depois a água se agita e Oxumaré sai em forma de uma cobra gigante verde e amarela, se enrola sobre seu próprio corpo e toma a forma de um homem enrolado por cobras, neste instante, surge um arco-íris sobre sua cabeça. “Arrobobô” Disse o mago cacique. Oxumaré sai das águas com Tupynajé na direção da aldeia. Quando este chega à aldeia o Pajé Anuaacã vem em sua direção dizendo que muitas pessoas estavam doentes e que todo o arraial estava desesperado. “Não se perturbe Pajé o tempo ainda não chegou. Diga aos guerreiros para fazerem o ritual da guerra”. Disse novamente o cacique.
Os Tabajaras eram um povo dado a violência, mas nunca disputaram guerras com o povo da aldeia. Suas terras distavam três dias de viajem da aldeia de Anuaacã. Havia ali uma jovem linda chamada Cabocla Pena Azul, ela havia ido pegar água no ribeiro. O saci macambira estava a sua espreita e apareceu-lhe em forma de um grande guerreiro de luz. Seu corpo era perfeito e sua aparência linda.
- Estou com muita sede, você poderia me dar água?
- Quem é o senhor, de que raça?
- Sou um mensageiro e vim falar com seu cacique.
- Sei, mas os nossos caciques não falam com estranhos sem serem apresentados.
- Você pode fazer isso por mim, Pena Azul?
- Como sabe o meu nome?
- O bem sempre descobre formas de conseguir seu fim.
Saci macambira bebeu a água e foi com Pena Azul falar com o cacique. A aldeia tabajara tinha uma grande taba no centro e lá dentro estavam os caciques; estavam se refrescando depois de um dia de sol quente. Pena Azul apresenta o guerreiro misterioso e diz: “Este é um mensageiro dos antepassados”.
- Sim, eu sou Tupynajé e estou aqui para avisar que os Anuaacãs querem expandir território e se organizam para atacarem esta aldeia. Contam com grandes feiticeiros e valentes guerreiros. Preparem-se, ataquem primeiro. Fui enviado pelo meu mestre Ishu Fronteira, um grande mago branco. Naquele instante, Macambira toma areia nas mãos e a transforma em vermes. Todos ficam maravilhados com o poder do guerreiro mensageiro. Todo o arraial reuniu-se de noite e preparam o ataque aos Anuaacãs. Eram cerca de 700 guerreiros. Na madrugada do outro dia rumam em direção à aldeia dos Anuaacãs. Enquanto isso Ishu no alto da serra chama as aves monstruosas para invadirem os Anuaacãs. Eram milhares delas. Tinha três metros de envergaduras entre as asas e o corpo parecia de homem com rosto de águia. Elas saíram de um buraco dentro da serra gritando como pterodátilos em vôos rasantes e altos até a aldeia. Quando as aves chegaram ao lugar o arraial dos Anuaacãs estes já estavam preparados. Os guerreiros dançavam o toré, sentiam em seus espíritos que havia algo no ar, mas não viam ou ouviam nada. Oxumaré, o homem das cobras, dá um gemido e abre sua boca, de dentro desta saem cobras aladas que comem os pterodátilos ainda em vôo. A Luta foi muito violenta e com muitas baixas para os Anuaacãs. Crianças e mulheres gritavam possessas de medo e doenças misteriosas se apoderavam do povo. Anuaacã resolve falar com Tupynajé em seu espírito. Ele toma o maracá sagrado e canta: “Tupynajé é o guerreiro da nação, ele vem com a luz na frente e seu arco na mão”. Naquele instante o velho cacique-pajé se materializa na frente de Anuaacã. E diz:
- Meu velho cacique o que é o bem?
- Não sei meu amigo. Mas, temo por meu povo.
- Não tema, pois o bem triunfará. Mas, me responda o bem, o que é?
- É a paz para meu povo.
- Respondeste com sabedoria. Contudo, o bem pode ter muitas outras formas. Para Ishu, o bem é fazer o mal. Realizando seu intento ele terá tanta paz como vocês. Então me diga novamente: O que é o bem?
- Minha sabedoria não alcança a dos encantados. Não sei. Apenas digo que quero paz para meu povo.
- Olhe ao seu redor e veja que em tudo temos uma lição. A cobra que pica é parte do todo. Ela fascina, encanta e mata. Assim é o bem e o mal, são tão leves como as penas dos pássaros. Tudo só depende da direção do vento. Afinal, morrer é mal para quem vive. Mas a terra agradece a vida que recebe. Desta forma devemos sempre esperar para dizermos as coisas, pois o nosso bem pode ser o mal do outro. E nem por isso somos maus. Ishu deseja seu bem que é o teu mal. Será Ishu mal em si mesmo? Certamente seu olhar está turvo, pois ainda não entendeu que não deve transpor os limites de seu termo. Cada um tem sua aldeia.
Enquanto os dois conversavam, a aurora do outro dia aparecia no horizonte. Os Tabajaras desceram a serra e estavam em torno da aldeia de Anuaacã. As flechas cruzavam o céu e os Anuaacãs respondiam com a mesma coragem e nesse ritmo muitos corpos tombavam ao chão. Ishu com asas de morcego voou até ao perímetro da aldeia e dava gargalhadas ao ver que em pouco tempo os Tabajaras imantados por seus sacis destruiriam a aldeia. Só não contava com a surpresa que o esperava e que viria do olho d’água. Tupynajé foi ao encontro de Ishu. O encontra sentado embaixo de um pé de macambira em um lugar alto vendo tudo.
- O grande mestre da magia negra se diverte com a morte dos encarnados tanto de um lado como de outro, não é?
- O que é a vida sem a morte. Veja como a terra bebe o sangue com prazer.
- É certo que a terra beberá todo o sangue derramado neste lugar, mas ela segue seu instinto. Nós somos mais que isso, você não acha?
- O que me importa se hoje sinto esse prazer, grande mago? O amanhã fica para depois.
- O amanhã só existe para quem vive no tempo Ishu, e você já saiu dele. Será sua covardia bravura?
- Covardia? Veja como todos me obedecem. Eles não sabem de onde vêm suas forças. Eu sou grande agora.
- Não vejo grandeza em você, interferir na natureza não é bravura. E você colherá seus frutos, Zambi é fiel às suas leis.
- Não me fale de Zambi, Ele não existe.
- Hoje vou te mostrar que a natureza é bem maior que você e por isso não se deve brincar de Deus.
Naquele momento Tupynajé canta seu ponto sagrado e de um olho d’água saem as falanges de Oxumaré. São cobras abrasadas, todas imantadas com as vibrações de vapor de água e formam um grande arco-íris no céu. As cobras se transformam em setas que ferem os guerreiros tabajaras que estavam vencendo a guerra, e duas delas cegam os olhos de Ishu. Ishu cego voa para sua loca no alto da serra e ali fica quieto. A peleja cessa e todos ajuntam seus mortos e feridos. O choro e o pranto estavam nos dois lados. Os tabajaras se retiram dos termos dos Anuaacãs. Tupynajé chama a serpente alada de Oxumaré e vai ao encontro de Ishu. O homem das cobras, Oxumaré, acompanha o mago Tubaguassu até Ishu.
- O bravo mago agora não ver. Em nada mudou, pois a cegueira era sua luz.
- Ver o que? Pois, os homens são maus e sempre querem a mesma coisa: Fama, dinheiro, prazer, poder, e até mesmo as vísceras humanas. Meu caro Pajé você nunca mudará esse bicho. Ele nunca se doma.
- É verdade que esse bicho não se doma. Por isso foi deixado para o tempo formar suas diferentes faces. Você não pode negar, há ternura na terra. Veja quantos morreram com bravura defendendo suas famílias. E isso não conta? Ishu, veja a luz maior! Aquela que na paciência das eras constrói mundos. Deixe o homem caminhar sua estrada. A que ele escolher como destino.
- Vá para a peste Tupynajé! O mal sempre estará atento. Ele é parte de tudo.
- Em poucas palavras Ishu falou muito. Todos os Pajés do passado já disseram isso. Contudo um rio sem leito morre. Por isso mudar o andar dos homens é sua morte, seu fim. A natureza por si só achará seu caminho. Arrobobó!
Quando Tupynajé disse a palavra mântrica de Oxumaré este se voltou contra Ishu e como uma grande serpente se enrola nele e o puxa para o olho d’água de onde ele havia saído. Ishu foi tragado pelas águas do rio. E ali ficou até entender que Deus está no alto, e nós somos partes muito pequenas de sua obra. Tupynajé após vencer o grande mago negro volta ao Grande Olorum e lá se esconde no tronco da Jurema.
Os tabajaras e os Anuaacãs seguiram suas vidas como de costume, cada povo um caminho, cada um para seu lugar. E você quem é? A sua resposta só depende de você. Ou será que você tem um encantado para te inspirar?...
Roosevelt,
ResponderExcluirComo de costume, seu texto tem um poder de seduzir o leitor de uma forma incrivel.
Dois pontos se fizeram muito importantes para mim, além de me proporcionarem novos requestionamentos sobre as discussões trazidas pelo torto. Esses pontos foram: a relação entre o bem e o mal; e a relação entre a espontaneidade contingencial do tempo.
Realmente, o que de fato deve ser considerado como bem ou mal? Aquilo que nós entendemos como bem ou mal? Aquilo que nos ensinam como bem ou mal? Um pouco dos dois? Serão as circunstâncias que possibilitam que nós passemos a repensar esse transito?
Ishu fez o mal? Mas como? Ao fazer o que determinavam como mal, ele não sentia paz? Mas a maldade dos homens significa não sofrer com a própria maldade exercitada por eles? E o retorno? E o choro? E as consequências?
Quanto ao tempo, podemos ver que a própria acidentalidade causada por esse tempo, é fruto de novas construções. É preciso paciência e muita poética para sentirmos os deslizes e os processos contidos na própria riqueza da dinâmica dos homens, e por isso mesmo, da natureza que segue seu rio...
Parabéns
Parabéns meu caro Roosevelt, é com muita excelência que tu expõe coisas fantásticas da nossa historia cultural, e ao msm tempo tb muito da filosofia, talvez, diria, quase universal que vai de Nietzsche a filosofia negra e indígena (detalhe que me percebo no momento,tenho referencia de grandes sábios europeus, mas não tenho referencias nem negra nem indígena, pelo menos de antes do começo do séc. XX) , ou seja, muito do hibridismo de Umbanda, com fantásticas concepções estéticas e cosmológicas. Esse lampejo meu caro que tu trata em seu texto, é tão claro porém desapercebido, as forças de construção e desconstrução são reais, e nem sempre a desconstrução é ruim (dirias o mal), afinal é por isto que estamos aqui, quantas pessoas não morreram para estarmos aqui, falando o que estamos falando com liberdade? Ou quantos pensamentos não foram desconstruídos para possibilitar que nós pensássemos dessa maneira? O mal contingente para uns foi o bem para nós... A Terra se destrói e se constrói a todo instante, na verdade o panta se metamorfoseá.
ResponderExcluirTenho orgulho do Senhor!!