segunda-feira, 28 de junho de 2010

A cegueira branca chegou até nós

Faz dez dias que o grande escritor da literatura portuguesa se foi. Grande, não só pela genialidade impressa em seus escritos os quais lhe garantiu o prêmio Nobel, mas pela sua destreza ao falar sobre a decadente natureza humana. Em "Ensaio sobre a cegueira", obra única de Saramago adaptada para o cinema, Meirelles soube sintonizar na película o desapontamento do escritor sobre um mal infiltrado que nos conduz a barbárie, presente tanto nos movimentos caóticos dos grandes centros urbanos quanto nos simples e pequenos gestos dissolvidos nas relações: a cegueira branca.
Em uma cidade conturbada, todos são atingidos por uma epidemia de uma desconhecida cegueira, exceto a mulher de um médico que apesar de ter o privilégio da visão, o famoso ditado popular "na terra de cegos quem tem um olho é o rei" não se aplica, pois ela não está salva, para o seu desespero, da selvageria do próximo, onde todos se encontram sedetos pela salvação. Assim, estaríamos nós, imersos em uma civilização que tem como máxima o individualismo e o oportunismo, em que o outro seria uma ferramenta para os nossos maiores interesses. Não sei até que ponto o "amor ao próximo" seria um antídoto para contenção das nossas tenebrosas tendências.
Aí está, o reflexo da nossa "sociedade pós-moderna" a qual o conceito de civilização ganha outros sentidos, talvez mais afastado daquilo que nos foi passado constantemente. A bárbarie e a civilização se apropriam de terrenos limítrofes, podemos perceber uma estreita cumplicidade de ambos desde tempos remotos, o que diferencia na contemporaneidade são os refinamentos dos dispositivos, seja através de armamentos ou nos holofotes publicitários, para espetacularizar
a crueldade. Assim, seria o humano, cruel que sem um Estado hobbiesiano, as relações não se sustentariam? Ou seria ele dócil como na concepção de Rosseau?
Enfim, esse é um dilema antigo, curioso até, que qualquer um que se pronuncie a falar sobre tal questão sempre surge um contraponto. Nos palcos, Diderot acreditou que os "bons valores" do homem estariam no núcleo familiar, contrapondo a essa idéia, na década de 50, o teatro do mal de Nelson Rodrigues abordaria as relações familiares como corrupta, onde o indivíduo seria tão deploravél quanto o seu próximo.
Uma questão tão antiga, que foi pensada por muitos, mas tão presente em nosso cotidiano. Estamos cercados de "outros", os quais depositamos expectativas de solidariedade e não sabemos se é o nosso próximo ou mais um que nos esbarramos na multidão. Um outro, assim como eu, tão frágil e tão cego em uma cidade perdida de destino ainda desconhecido.

9 comentários:

  1. Querida Mai,

    você abordou um tema que apesar de ser muito cotidiano, passa ao longe das percepções humanas, isso por que estamos todos cegos.

    Acredito que a individualidade traz algo muito positivo, visto que os humanos possuem suas próprias formas de enxergar o mundo, seus valores, suas escolhas. No entanto, quando a individualidade se torna individualismo, a coisa pega, pois como você bem observou, passamos a transitar em uma arena social ausente de reconhecimentos coletivos.

    O grande problema é a velocidade do tempo. Tudo é cronometrado. Temos horas pra trepar, hora pra estudar, pra conversar, pra lavar nossas cuecas e calcinhas e por isso mesmo, nossas ações ficam submetidas ao controle do tempo. Adaptamo-nos a rotatividade crua e calculada do cotidiano, e muitas vezes deixamos escapar de nossas mãos, o que temos de grande valor que é a nossa poética, nossa performance, nossa estética, nossa criatividade e autonomia de sentirmos o outro e o mundo que nos rodeia.

    Fantástico Mai! Parabéns!

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  2. Um texto muito bem concatenado em relação às várias concepções em torno de um fenômeno que guarda uma certa essência.

    Você escreve muito bem, seja bem-vinda.

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  3. Maíra,

    Adorei seu texto e, apesar de conhecer o livro, confesso que preciso assistir ao filme "Ensaio sobre a cegueira", o qual ainda não sei bem pq não vi.

    Quanto ao tema em questão concordo quando aborda a questão do individualismo como uma das causas dessa cegueira branca. Aproveitando o comentário de Vina, tb concordo que é preciso diferenciar individualidade e individualismo (este geralmente recorre ao sentido negativo, como bem entendeu Hobbes).

    No entanto, acredito que tais reflexos que vc mencionou, deve-se mais às concepções modernas da vida que de uma dita pós-moderna. Na assim chamada pós-modernidade, a relação dual de individuo/sociedade não é propriamente aceita. Ela torna-se híbrida, à medida que alguns preconceitos e discriminações são superados pela publicização de novas identidades e lutas sociais.

    Por fim, o seu texto toca no ponto mais profundo do tema e compreende bem os diferentes significados dessa nova era. É para refletirmos sobre a importância de ver e discernir, de ouvir e compreender, de ser e estar consigo e com os outros.

    Parabéns,
    um abraço, Eder.

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  4. "Não sei até que ponto o 'amor ao próximo' seria um antídoto para contenção das nossas tenebrosas tendências."

    Até o ponto em que, caso um dia aconteça, entendamos o que esta frase significa e cheguemos a ter a sabedoria necessária para pô-la em prática.

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  5. Cara Maíra torta,
    Gostei muto de seu texto sobre a obra do nobre torto português. Parabéns

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  6. Olá ,

    falar de pós-modernismo é tão escorregadio quanto o seu conceito. Acredito sim, que a nossa sociedade não "comporta" esse modelo de indivíduo que, por ironia, ela mesmo o criou. O pós- modernismo surge do próprio movimento convulsivo do modernismo, das demandas freneticas de uma nova ordem de sociedade.Em tempos de bipartidarismo mundial, guerras nucleares, movimentos hippies, surge aí um novo sujeito muito mais complexo que em tempos anteriores. Creio que as questões humanas sempre se atualizam nos diversos enredos socio-historicos, e que isso iria muito mais além de uma época modernista ou porque não tenhamos sabedoria o necessária para reconhecer próximo.

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  7. Concordo contigo, Maíra.

    Na verdade este é um assunto que desliza nossas palavras. Gosto muito dessa expressão "pós-moderno", principalmente se penso como novo "movimento" em contraposição ao modernismo que logrou unificar conceitos a favor de ideologias universalizantes em detrimento das diferenças (conceito de Nação, p.ex.). Por outro lado, acredito que tornou-se pouco compreensível ainda, justamente pela condição indeterminada das culturas contemporâneas!

    É pano pra manga.

    Bom, mas prefiro não pensar tanto nessas questões, já que há uma mais interessante que é abraçar nosso querido escritor português. Logo após seu falecimento vi um texto (se posso chamar assim) na Revista Veja que infelizmente descartava a importância dele para a literatura. Na mesma edição a falava-se mais sobre o "Cala Boca Galvão" o que rendeu 7 páginas!!!

    Como podem, seja lá qual for a orientação política, desprezar uma biografia tão linda qto a de Saramago?

    Cegueira Branca?

    grande abraço,

    Eder.

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  8. "Cala a Boca Galvão" é o brega. Saramago é a elite intelectual. A Veja é brega, pois se volta à maioria, mas é também produto de um mercado e vontade de consumir-se em lucro.

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