quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

A ópera também se entorta: Don Giovanni (de Mozart)

Dramma Giocoso. Assim é classificada a natureza da famosa ópera Don Giovanni, do famosíssimo compositor Wolfgang Amadeus Mozart em parceria com o competente libretista Lorenzo da Ponte, que estreou em Praga, em 1787. Uma possível tradução desta classificação para o nosso português seria Drama Jocoso, o que já nos coloca na espera de um abrir de cortinas para um enredo com o sabor do olhar torto, afinal, creio que para o torto a vida é inevitavelmente uma tragicomédia convidativa, um drama jocoso.

A protofonia (introdução) já nos golpeia com um andante denso, aterrador, um drama que remonta à cena final da ópera, um banquete em que o Comendador, assassinado por Don Giovanni, retorna do reino dos mortos em forma de estátua e o carrega consigo para um abismo infernal, e se encerra com um allegro, enérgico, errante, jocoso. A minha leitura desta deliciosa abertura é a voz do próprio Mozart a nos sussurrar “sentem-se à mesa para este banquete os tragicômicos por acaso e convicção”.

Logo em seguida, Mozart nos apresenta a primeira cena, à qual me aterei para apresentar minha observação musicológica interessante ao olhar torto. O início da cena nos mostra Leoporello, criado submisso de Don Giovanni, cuja classificação vocal é baixo, reclamando com uma raiva ingênua e cômica de sua situação de servo e, naquele momento, sentinela, de um senhor tão libertino, ou, como o subtítulo da ópera nos sugere, tão dissoluto. Este senhor libertino, que é um papel para um barítono, tem ares de perverso, mas é facilmente notado como um reconhecedor, mesmo que cínico, da lei. Ele salta de uma janela em que supostamente havia entrado para cortejar a jovem nobre comprometida Donna Anna, voz soprano, que o acompanha aos gritos de repúdio, ao meu ver, carregados de um desejo indesejado. Abre-se um trio em que se harmonizam desorganizadamente ( graças à competência de Mozart) a discussão de Don Giovanni com Donna Anna e a reclamação do agora escondido Leoporello. Ao ouvir a euforia, o Comendador, pai de Donna Anna, um baixo de voz aconselhavelmente volumosa, imponente, imperativamente normativa como a lei, corre em direção ao dissoluto afim de desafiá-lo a um duelo de espadas. Don Giovanni, após uma tentativa persistente de evitar tal confronto, acaba sendo obrigado a agir em legítima defesa, ferindo fatalmente o Comendador.

Após o golpe mortal desferido contra o Comendador, abre-se um novo trio, mais uma vez contraditoriamente, em texto e música, harmônico entre Don Giovanni, o Comendador e Leoporello, ou seja, um barítono e dois baixos, um trio grave como a situação. Enfim, a cena se encerra com a chegada de Don Ottavio, noivo de Donna Anna, um tenor, um bom moço que jura vingança em nome de sua bela amada e há um dueto entre os dois.

Cabe-me agora, para enfim finalizar e demonstrar o principal objetivo do texto, analisar brevemente o porquê das vozes que representam as personagens. De maneira muito breve, a classificação vocal masculina vai do mais grave (baixo), passa pelo médio, nem tão grave, nem tão agudo (barítono) e, enfim, ao mais agudo (tenor). Ora, Don Giovanni, nossa personagem principal, é um barítono, e não tão por acaso não é grave e somente grave, como o trapalhão e submisso Leoporello, e como o pai, a lei, o Comendador. Nem é agudo e romanticamente perfeito como Don Ottavio. Mas é um compêndio dos dois, sem ser os dois. É levemente sublime e grotesco, e consegue se harmonizar, mesmo que em contraponto, até mesmo com o soprano (voz feminina aguda). É um belo exemplo do neurótico alado. Ele se vê obrigado a negociar com a lei, mas consciente de que a negligência traz consequências, como nos mostra o final da ópera. Ele é estrategicamente barítono porque submeter-se sem análise à lei é ser agudo demais e dribá-la sem reconhecer seu preço é cair no grave baixo, ou seja, ele e sua voz são essencialmente um diálogo e não um partidarismo sublime ou grotesco por excelência.

Um comentário:

  1. Pra variar, mais um excelente texto!
    Provou o quanto você entende de ópera, além de mostrar claramente a sua postura eclética quando o assunto se trata de música.
    Bom, vá ver que esse seu ecletismo faz você assumir uma posição responsável ao pensar sobre o torto.
    Por ser eclético, lida espontaneamente com a pluralidade (para mim, uma característica marcadamente do que eu concebo como torto), ao mesmo tempo deixando claro as suas inclinações, repeitando assim, sua particularidade subjetiva; e por outro lado, por ser plural, você sabe não só balizar com os opostos, como também admitir essa diversidade.
    Lendo textos como esse, cada vez eu mais me convenço do quanto o torto se encontra inserido em qualquer coisa.
    Claro que não obrigo as pessoas terem que aceitar o meu entendimento sobre o torto, mas se elas pensassem bem, veriam que o torto já existe desde a natureza inicial do nosso aparelho psiquico, visto que esse aparelho é estruturado de forma ambigua, estabelecendo um abismo em comunhão entre os nossos desejos e as nossas leis, do contrário, não entrariamos em conflitos com nós mesmos.
    Como venho dito, apesar de não ter lugar definitivo, o torto é o meio, assim como você bem expôs em seu texto. Ou seja, transita entre um extremo e outro, apropria-se dos extremos, mas sempre buscando mesclar esses extremos e trazê-los para um ponto que ao invés de se manter apenas em um lado ou em outro, coloca-os em uma intersecção fluida.

    ResponderExcluir