“Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.”(Drummond)
Enquanto os homens assistiam à final da copa do mundo, Gabriel e Lúcifer divertiam-se assistindo a todo o mundo. Começaram então um jogo de conjeturas acerca da liberdade humana, em que a ordem das falas não alterará o produto.
- Livre, o homem sobrepujaria as glebas do seu feudo interior, e apenas a senhor se prestaria!
- Sim, mas você há de convir que mesmo esta liberdade deste ser sobrepujante implica uma referência convencional. Aliás, lembre-se que para que exista, por exemplo, o poder, deve-se existir necessariamente o outro.
- Pois é, pensando bem, o meu ideal de homem livre é um balão cheio de si e de ar pelo céu, mas sempre com uma corda que o prende ao chão.
- Quase perfeito! Mas lembre-se que, mesmo sem cordas, os balões sempre cairão um dia ao chão. E convém levar-se em conta que boa parte da graça de voar seja observar privilegiada e distintamente a terra.
- Isto mesmo! E notar-se a intrigante consideração lexical que nos esclarece vir da palavra húmus o vocábulo humano, e que o caminho de Cristo, um dos homens mais falicizados da história, era o da humildade, ou seja, o de estar atento ao status humilhante, ao status húmus a que o homem sempre estará fadado a retornar, e do qual sempre renascerá, por estar preso a esta recorrência eterna.
- Bravo! E que considerar significa juntar ao sidus, à estrela. Ou seja, é elevar o ser amado à dignidade da altura das estrelas, para que esse se perceba distinto do seu semelhante, tão grão de húmus quanto ele.
(Neste momento, um homem curioso interrompe a epifania):
- Agora eu pergunto a um anjo torto, ou seja, a qualquer um dos dois; e quanto a estar em cima do muro?
(A que um deles responde. Não importa o qual pois os dois são diferentes entre si, sendo entre si os mesmos):
- O folclore nos adverte: quem fica em cima do muro toma pedrada dos dois lados. Mas devo contribuir com um olhar elaborado um pouco diferentemente. Estar em cima do muro, além de nos permitir enxergar muito bem os dois lados, deixa-nos num estado de tensão essencial para que nos equilibremos e não caiamos em nenhum desses lados. Pois há o prejuízo da queda em qualquer um dos dois. Ou seja, estar em cima do muro é uma estratégia inteligente, pois nos obriga a dar-nos atenção exagerada a nós mesmos, percebendo-nos e considerando-nos saudavelmente limitados perante a existência e a situação também desejante do outro.
Torná-lo maior para que ele veja o quanto pequeno ele é.
ResponderExcluirO mais interessante que eu interpretei nesse texto, é que ele nos mostra também, o quanto também se é dificil admitir não levantar bandeiras.
As pessoas têm um péssimo hábito de pensar que por não aderir a uma tendência, o indivíduo, além de ser visto como alguém que não tem uma postura consciente de si, é encarado como alguém que vive ganhando no jogo do toma lá da cá.
Porém, você consegue mostrar em seu texto, um torto que, apesar de buscar admitir a existência de todos os lados, vive em um constante estado de tensão por não acreditar em uma postura coerente e eternamente lógica da realidade.
Ou seja: se você desce do muro e adere a um dos lados dele, você ganha a segurança de se ver pertencido a um lado, mas ganha a limitação, justamente por conhecer apenas um lado do muro, além de assumir a postura horrenda do olhar excludente. Por outro lado, se você resolve ficar em cima do muro, você ganha por conseguir se degustar com a grandeza da pluralidade, mas por outro lado, você não tem apoio exclusivo de ninguém, ficando por isso mesmo, sempre ameaçado de tomar pedradas.
Ai eu uso o dito: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Muito fantástico o seu texto! Mesmo que eu conseguisse dar milhões de elogios a esse texto, ainda creio que eu não estaria dizendo o quanto maravilhoso eu o achei.
Hum... Muito interessante a sua abordagem sobre a neutralidade. Mas, e se ficar em cima do muro nos isente de pedradas dos dois lados? Afinal, sempre haverá aquele que jogará a primeira pedra, não é? O que poderia provocar o partidarismo do sujeito Torto. O muro pode vir a ser uma proteção contra as forças externas e como você mesmo diz em seu texto, um estuário para o auto-conhecimento. Mas, envolver-se na guerra consequentemente nos trará hematomas, feridas, uma vivência prática da coisa toda, embora nos confunda, unilateralizando o ponto de vista sobre os aliados e adversários. Que tal sermos agentes duplos? Não! Assaz perigoso! Para isso teríamos que descer do muro! Hum... Isso me lembra um trecho de Alice no País dos Espelhos sobre uma criatura oval que ficava sentada em cima do muro...
ResponderExcluirObrigado pelas agradáveis e inteligentes considerações, meus caros.
ResponderExcluirBom, eu acredito que o torto tem suas posições e suas escolhas. Se o torto admite possuir subjetividades, é por que ele tem um olhar de aprovação e de reprovação para as coisas, ou seja, é um sujeito com valores.
ResponderExcluirNo entanto, eu não acredito que possa haver o partidarismo no torto, visto que, por ele acreditar que a realidade não é nada mais que meros rearranjos de arbitrariedade signica, ele bem sabe que a verdade absoluta não passa de uma frustração humana, e por isso mesmo, ele não escolhe um lado ou o outro.
Apesar de saber que por ser subjetividade também, o torto, de acordo com a ocasião, tende mais para um lado que para o outro, não significa dizer que necessariamente ele acredite com total fé a verdade de um lado OU do outro.
O torto prefere conhecer as grandezas e os deslizes de todos os lados, aplaudir a grandeza de todos eles, e se negar a se apoiar de todos esses lados de forma exclusiva. Ele quer todos, mas não aceita definitivamente nada.