Machado de Assis, o mais lido dos escritores brasileiros, teve a argúcia de contestar em prosa os rumos que norteavam uma sociedade que, ao seu tempo, ainda mais que agora, sofria com a sua condição de colonizada e com o devotamento que prestava às convenções européias de como se pensar e agir, o que se evidencia através da literatura que àquela época era construída e da forma de se observar às relações e à sociedade em geral das pessoas. Destacado como um célebre romancista da escola realista, como é próprio a quem escreve, nos seus primeiros passos na literatura, estabeleceu uma estadia rápida no dorso da poesia, chegando a organizar um tomo de poemas ao qual atribuíra o nome de Americanas. Não mais disposto a fomentar o que pensava à moda de como fizera Novalis, sendo um dos seus precursores Homero tal como os conhecemos hoje, mesmo sabendo de uma preexistência desses, dos versos, como nos mostra Aristóteles na Arte Poética citando, dentre outras formas, a aulética e citarística, Machado os abandona e parte, de maneira definitiva, para a prosa, escrevendo os seus primeiros romances ao estilo romântico os quais, devo dizer, ainda não os li.
Fator marcante nas suas obras – não sei nessas do seu período romântico – é algo que aponta para o ceticismo, como se, através da dúvida, quisesse nos esclarecer, de maneira pedagógica até, o que se vivera no início do século 20 que, ocultando poucos aspectos, ainda se mostra muito vivo nos nossos dias, como se tivéssemos conservado-nos na monomania, entrepostos no decorrer de cem anos como um pendulo que não exercera movimento algum, mas ficara estático no seu estado essencial. Artistas que compõem polcas como forma de servir o que se dança e é moda, que não conseguem concretizar os grandes trabalhos musicais que desejam e, quando concretizam, logo se despedaçam por carregarem a mácula da reprodução de outras obras já consagradas; homens, cheios de pretensões e sonhos, trancafiados no cubículo de seus apartamentos, optando por padecer no seu tédio a exprimir as sensações enlevadas que junto a si carregam; um espaço que parece desdizer os preceitos políticos de ordem e progresso, uma vez que, mesmo que institucionalmente pudesse haver alguma ordem e progresso, as subjetividades se encontravam aos pedaços, carcomidas pelo poder inexorável que a soberba e as vaidades lhes traziam; um romance que premedita o futuro de um país que cultua certos valores, como se o que se causa não provocasse nenhum efeito. Mas Machado não se posiciona quanto à moral, prefere calar-se e deixar com que o leitor tire as suas próprias conclusões, rebusque-se em filosofias especulando se Capitu traiu o seu esposo ou não. Porém, pobres são os que se atentam a tirar conclusões como essa, já que o que Machado preteriu ao instaurar a dúvida, fora deleitar-se no logro de suas conclusões antes mesmo de publicar este livro, o Dom Casmurro: rir-se dos que faziam da sua moral o principal centro para se chegar a uma opinião concreta sobre o principal aspecto da trama, a poligamia. Não há a traição ou a falta de culpa, há a dúvida. Cada põe a sua Capitu na posição que lhe parece mais conivente.
Depois de atingida a maturidade, um filho vê-se aconselhado pelo pai. Nada mais o ensina que o que o nosso querido Josué Maia chama de Hipocrisia Benéfica, mas, para ele, é a Teoria do Medalhão. Artifícios de mesa, como termos jurídicos em latim, nomes célebres que foram marcados pela história, modelos imediatos de estar coerente quando interrogado, são os meios que o pai lhe esclarece para que, mais adiante, ele não possa vir a sofre apuros devido a isso. Apesar de não vermos recursos estilísticos que possam nos dá uma visão clara do cansaço machadiano, percebemos, quando amadurecidos os nossos olhares sobre a sua obra, que ele descreve a exaustão, uma vez que não há, como em Dostoievski, caminhos que possam nos levar para uma única rota; antes de tudo, ao que me parece, há a desesperança, há a ciência que subjuga os seus alienistas e descreve, a qualquer modo, as patologias que desejam.
Não consigo enxergar a obra de Machado como um monumento humanista, pois, se isso fosse ela, caberia a esta concepção duas colocações: 1° Quais os limites de especulação sobre intencionalidade de uma obra se o que pensa o autor, que tem a sua própria intenção, não nos é acessível? Portanto, há duas intenções sobre o sentido da obra: a do autor e a do leitor; quando se trata de uma obra que fora traduzida, entra uma que assume um caráter não tão completo quanto esses dois primeiros; como nos diz Deleuze em palavras que eu mesmo desenho, há a intenção que é criada no leitor através do olhar que o tradutor carrega sobre a obra. 2° O caráter cético dá a obra alguma pretensão humanística? Se sim, Rubião, personagem principal de Quincas Borba, que, após deleitar-se no que ofertava a sociedade carioca do início do século passado e submergir-se nas agruras da miséria, teria um desfecho de vida diferente.
Machado, como o Fernando Pessoa, e muitos outros que não me vêm à memória, é um autor que consegue, de certa forma, transcender a perspectiva torta, pois há um desprendimento, um amargor literário que nos condiciona para um lugar que fica mais longe da ficção; muito mais longe da história pela história. Há qualquer coisa de inconcebível e absurdo que sinto inveja por não entender ao certo o que é.
Bom, eu poderia dizer que apesar da obra Machadiana trazer como você bem explicitou, uma postura cética, propondo muitas vezes ao leitor, degladiar-se com os seus valores, através das dúvidas, como no caso de Capitu; não vejo como conceber a obra Machadiana como algo além do torto. Não que eu esteja querendo discutir se Machado é torto ou não, até por que, o próprio autor não discutia se ele era torto ou reto.
ResponderExcluirPorém, o que quero dizer é que, se for pra pensar algumas características na obra Machadiana como tortas ou não, eu posso dizer que, mesmo que Machado tenha ido "além do tempo", isso não o tornava além do torto, visto que para o torto, se por um lado, ele acredita ir além de seus limites por ser dotado de valores, e, portanto, de novas questões; por outro, ele é inevitavelmente produto do meio, e mesmo que busque ir além, ele se depara com as convenções que ele próprio incorporou nele mesmo.
É por isso que não concebo a idéia de pensar Machado além do torto, pois, assim como você disse, Machado se classificava em um tempo e em uma corrente, assim como você chegou a discutir em seu texto se ele era humanista, que ele fez parte do realismo, que ele partiu inicialmente por uma fase romântica, etc, etc.
É devido a isso que para mim, ninguém vai além do próprio torto. Todo mundo pra conviver com a cultura da qual faz parte, mesmo querendo ir além, não encontra outra saida, se não a saida de necessitar se entortar, visto que para se conviver socialmente, a todo instante estamos fazendo negociações com os nossos desejos (subjetividades) e com os limites que nos são dados, ou seja, as leis (objetividade).
Outra coisa: quando você se referiu a obra do Machado de Assis, você a caracterizou como “um lugar que fica mais longe da ficção; muito mais longe da história pela história". Acredito eu, que, tanto um autor fictício, quando um autor que tentou ser o mais realista possível, nunca deixou de ir mais longe da ficção, nem deixou de se desvoncular da ficção, uma vez que, a verdade, por mais justificável que seja, não passa de um produto lógico construído por fantasias convencionadas, e essas fantasias transitam tanto entre um artigo científico, quanto em uma obra dita literária. Também acredito que inevitavelmente fazemos algo além da própria história, visto que, se a cultura é reflexo de um tempo e de novas questões, uma vez que ela é processo, a própria história, se por um lado, finca o sujeito em determinadas classificações históricas, é reformulada por esse sujeito, por ele ser um produtor de idéias influenciado pelas próprias possibilidades dadas por essa história. Portanto, se estamos pertencendo a um determinado tempo, é por que, ao mesmo tempo, estamos indo "além do tempo, porém, presos a ele".