Na alvorada, tempo-lugar em que os pulmões estão ásperos e toda poesia esvaiu, acordou Agnasno Timódio, sempre áspero e sem poesia, precisamente às quatro e trinta e cinco.
Não havia tempo para procedimentos hollywoodianos, muito embora lhe causassem sensação nostálgica os filmes que reservam tempo para o barbeado desleixado de seus protagonistas. Para Agnasno, supervisor de carreira na PetroJaz, o tempo era curto, a água dantescamente fria e a barba um patrimônio histórico.
Depois da gélida e pertubadora experiência do banho, arrumou-se metodicamente e fez um bom gargarejo enquanto ouvia no rádio em mono a Estação Deus AM.
Já no carro, tentava seguir as canções com sua voz ainda rouca. Era bom cantor, teria chegado ao sucesso não fossem “- os viados dos meus irmãos, por quem tive que trabalhar desde muleque”.
Chegou ao trabalho. Lançou um olhar cheio de libido e culpa em direção ao traseiro de sua analista preferida –até que ela se virasse, claro, quando abruptamente ele lhe desejaria bom dia com um sorriso pesado de sono. “- Bom diiiiiiia, seu Timódio!”.
Aquele sotaque do semi-árido e aqueles traços sertanejos estranhamente lhe aumentavam o desejo. Talvez porque toda aquela aridez coadunasse com a sua própria aridez e o resultado fosse um corpo em ebulição profana e culpada.
Seguiu. No intervalo do almoço discutiu com seus subalternos, como o fazia ritualmente, sobre futebol , política e religião. Era um grande orador. Aprendeu a mais rebuscada retórica nos três livros que leu. Encontrou num deles, inclusive, a sua máxima permanente “quando se está feliz, o universo conspira a seu favor”. Era sagaz em suas colocações, vomitava axiomas. Uma máquina de silogismos perfeitos, e, por tal talento, julgava-se próprio juiz de sua perfeição, portanto era plenamente e eternamente perfeito debatedor. “-Vocês viram aqueles dois viados querendo adotar um bebê? O fim dos tempos está próximo, amigos!” ; “Bom era no tempo da ditadura! A educação era perfeita! Os governantes tinham moral!” ; “Aqueles viados vêm com aquela coisa de direitos humanos, mas ninguém leva bandido pra casa!”.
Depois de esbanjar com propriedade todo seu sistemático discurso, era hora de voltar pra casa.
Os meninos do vizinho brincavam perto da sua porta. Entoavam todos a uma só voz:
“Que coisa alienígena!
Que coisa intrigante!
Cheirar Lança-Perfume e peidar Desodorante!
Gererê! Gererê! LSD!!!”
Pensou: “ – Viados sem educação! Ai, meus tempos de palmatória de ferro! É o fim dos tempos… É o fim dos tempos…”
Entrou em casa, ligou a televisão e prestou alguns segundos de atenção ao debate entre um sociólogo e um psicólogo acerca da criminalidade. “-Merda!”. Desligou cheio de raiva. “Eu passei fome e nunca precisei roubar! Esses viados só sabem falar e falar e defender bandido! Talvez porque não tenham sido criados à base de fome e de bala cantando em seu quintal! Ai, se essas mãos de moça tivessem pegado numa enxada!”.
Lembrou-se da vontade que tinha, quando criança, de roubar os suculentos tomates da barraca de Seu Afonso, na Feirinha dos Agricultores da pequena cidade de Pedantia. Entretanto, ele conseguia resistir. E sobrepujar a desiderabilidade era uma recompensa. Afinal, muitas vezes se arranjava farinha e café, e se poderia bater no peito e esbravejar.“-Eu num fizzz! Tenho dignidade!”.
Mais tarde, após umas duas horas ensaiando as músicas que cantaria em sua igreja no domingo, foi deitar-se.
Já no outro dia, compareceu à constituição de um júri popular. Era um homem de ilibada reputação, não tinha antecedentes criminais. Aliás, por perceber que se tratava de um homossexual no banco dos réus, desejou calidamente ser sorteado. “Essa bicha maconheira vai pra a cadeia, em nome de Jesus!”.
Foi sorteado. E, aliás, por seis votos a um, a “bicha maconheira” foi condenada, ainda que as provas fossem discutíveis e rarefeitas. Afinal, pensou Agnasno, “- Quando se é bicha não se tem deus, como se vai amar ao próximo?”.
Esse texto me fez lembrar algumas posições falso moralistas... A personagem vive os conflitos no seu cotidiano, mas não os permite a revê-los. Mesmo assim defende e assume a sua posição taxativamente.
ResponderExcluirCuriosidade: Agnasno é uma combinação de Agnaldo Timoteo com asno?
Acredito que o texto levanta problemáticas muito pertinentes no que diz respeito às "Verdades" vomitadas por uns e outros q se consideram imbatíveis, quando na verdade, o texto mostra toda uma contradição empenada, nociva, e não uma contradição conscientemente assumida por ser dotada de paradoxos, erros e acertos. Muito legal.
ResponderExcluirPorém, acho muito arriscado acharmos que não temos competência para opinarmos sobre as coisas por simplesmente termos lido três livros ou nenhum. As vezes eu acho q determinarmos aptidões pelo nivel de instrução de leitura, significa manter a hierarquização sos saberes entre os competentes e os não-competentes, e a gente sabe q não é sempre assim q as coisas funcionam.
No entanto, novamente dou meus parabéns pelo texto. Pra variar, muito bem escrito e gostoso de se ler.
Caro Alysson, aorigem do nome é essa, sim.Muito embora não sefaçamuitarelação biográfica com o cantor.
ResponderExcluirCaro Vina,
ResponderExcluir"As vezes eu acho q determinarmos aptidões pelo nivel de instrução de leitura, significa manter a hierarquização sos saberes entre os competentes e os não-competentes, e a gente sabe q não é sempre assim q as coisas funcionam."
Concordo plenamente.Aliás,passa longe do meu texto empreender isto que você observou.
Agnasno não é A nem B.Ele está em A e B. Ele é o senso comum. Acho que isto ficou incompreendido. O que quis ser simbolizado neste ponto a que você se ateve foi a falta de perquirimento do senso comum. Foi simplesmente aquela questão de se ter muita doxa e pouca crítica sistemática. Como já disse aqui no blog, o teor dos livros não se mede pela densidade física de seus tomos. Hierarquia pressupõe algo estamental, eu não falei em "Mais burro" e "menos burro", estou criticando apenas a característica do senso comum (que, repito, pode residir em qualquer um de nós) de achar que uma notícia tendenciosa no Jornal Nacional informa tão bem a ponto de já se poder sair fazendo julgamentos acerca de coisas que são extremamente sérias. E isso se refletiu, no panorama do texto, na formação do júri popular. Aliás, a questão, a meu ver, deveria ser mais interessante neste ponto. É algo extremamente crítico, pois, por falta de informação e excesso de confiança, pode-se estar vomitando axiomas nazistas sem se saber. De jeito nenhum eu estou dizendo que quem leu mais é necessariamente mais crítico.Mas não vou ser hipócrita afirmando que a leitura não constitui a principal ferramenta de emancipação. Há de se tomar cuidado, pois este tipo pensamento, levando-se por um viés acomodado de achar que não se precisa de leitura para se ter uma visão sistemática e emancipadora, é que pode agir a favor da conservação das estruturas sociais e, consequentemente, ser (aí sim) hierarquizante.
Obrigado pelo interessante comentário!
"levando-se por um viés acomodado de achar que não se precisa de leitura para se ter uma visão sistemática e emancipadora"
ResponderExcluirOpa, vamos devagar!! rsrs. Em nenhum momento eu cheguei a dizer que não precisamos da leitura, nem que o saber sistematizado não tem importância.
Por ser adepto do posicionamento torto, acredito e estimulo as pessoas em geral e aos meus alunos para a importância do conhecimento, uma vez que em nossa sociedade marcada pela informação, manter-se informado e instruido é condição salutar para melhores posições na sociedade. O saber formalizado é sinônimo de capital cultural, e portanto, de recompensas e privilegios sociais.
Em nenhum momento eu disse que o saber não emancipa. O que eu quis chamar atenção foi para o fato de termos cuidados em não associarmos a falta de leitura, a uma falta de posicionamentos conscientes com o mundo. As vezes podemos ter lido milhões de livros e não termos tidos capacidades de críticas de pensarmos o nosso lugar no mundo, assim como podemos não ter lido uma extensa biblioteca, mas nem por isso deixamos de ter uma postura sábia para argumentarmos sobre o mundo. No entato, você ja me esclareceu a esse respeito.
Claro, meu caro. Não foi direcionado exatamente a você. Perdoe-me pela imprecisão da colocação. Aliás, você tanto sabe disso que come livros. Abração!
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