quarta-feira, 28 de abril de 2010

Diotima no Banquete de Platão: um discurso torto

Hoje me perdi num daqueles instantes em que a autonomia do inconsciente se confirma. Isto se deu por ter redescoberto entre folheios e folheios, das páginas do Banquete de Platão, o meu discurso favorito, que é narrado por Sócrates enquanto discussão com Diotima de Matinea, filósofa grega, acerca da natureza do Amor.

Como vejo que o discurso encerra muito bem o que vejo como torto – a busca pelo entremeio, a falta de extremos, porém dialogando com estes etc – pedirei licença aos leitores para reproduzir integralmente os excertos, poupando-me de comentários pontuais, que só denegririam a relação estética que mantenho com o texto.

Pergunta Sócrates a Diotima:
“- Que dizes, ó Diotima? É feio então o Amor, e
mau?
E ela: - Não vais te calar? Acaso pensas que o que não for belo,
é forçoso ser feio?
- Exatamente.
- E também se não for sábio é ignorante? Ou não percebeste
que existe algo entre sabedoria e ignorância?
- Que é?
- O opinar certo, mesmo sem poder dar razão, não sabes, dizia-me
ela, que nem é saber - pois o que é sem razão, como seria
ciência? - nem é ignorância - pois o que atinge o ser, como seria
ignorância? - e que é sem dúvida alguma coisa desse tipo a
opinião certa, um intermediário entre entendimento e
ignorância.
- É verdade o que dizes, tornei-lhe.
- Não fiques, portanto, forçando o que não é belo a ser feio,
nem o que não é bom a ser mau. Assim também o Amor,
porque tu mesmo admites que não é bom nem belo, nem por
isso vás imaginar que ele deve ser feio e mau, mas sim algo que
está, dizia ela, entre esses dois extremos.”

Ou seja, Eros (Amor, um daimon) representa o trânsito entre a ignorância e o conhecimento, representa a exploração do que pertence a tudo e a nada simultaneamente.

Diotima conta ainda como a trajetória do Amor é torta desde sua concepção:

“Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre
os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso.
Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a
Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o
néctar - pois vinho ainda não havia - penetrou o jardim de Zeus
e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta
de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado
e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo
de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo
que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é
bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a
condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e
longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas
é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro,
deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque
tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão.
Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom,
e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer
maquinações, ávido de sabedoria e cheio ele recursos, a
filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem
imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele
germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo
ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre
lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem
enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da
ignorância. Eis com efeito o que se dá. Nenhum deus filosofa ou
deseja ser sábio - pois já é -, assim como se alguém mais é
sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou
desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da
ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil,
nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja portanto
quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser
preciso.”

A referência é feita aos filósofos, mas podemos fazer uma analogia à perspectiva do Rei Bosta, por exemplo. O mendigo passeando de limusine em Manhattan: o admitir-se eterno aprendiz tendo consciência de que esta condição o distingue de um status meramente desprestigiado.

O Amor, para Diotima, é este torto que afirmando se nega e negando se afirma. Errante e deslizante em relação aos extremos.

Vou ficar por aqui para não vos cansar, leitores. Mas devo vos confessar que fiquei muito feliz em ter reencontrado este belíssimo fundamento filosófico para a postura aqui tida como torta.

Um comentário:

  1. A partir dessa sua amostra conflitante, entortada a respeito do amor, eu citarei um trecho de minha música chamada "Torto" que diz assim: "como ser sempre feliz/se a força sempre diz/ que o amor é a dor que acalma?"
    Enfim, vivemos transitando. Se paramos um instante para descansarmos na estrada, é mais para pormos nossas idéias em mais um movimento, ou seja, qual caminho que agora devo seguir? E nem sempre o que é bom e belo, necessariamente é bom ou belo, afinal, trazendo novamente um trecho de minha composição: " como me entender enfim/ se o que nego, digo sim/ acertando a escolha errada"
    Quanto ao Rei Bosta, fiquei um pouco sem entender a comparação. Talvez seja por que você fez a grandiosidade de colocar a nossa majestade de merda em um plano de exemplos concretos, enquanto eu discuti o Rei Bosta em um plano mais estético, entre o ter e o querer ter, e ao mesmo tempo o não ter achando que conquistou tudo.
    Muito interessante você ter trazido esses trechos do banquete. Faz muito tempo que li esse livro e estava esquecido desse detalhe torto. Parabéns!

    ResponderExcluir