quinta-feira, 8 de abril de 2010

Cegueira

Cegueira

Todos os dias em Uberaba as pessoas saem para trabalhar. É o que ocorre em todo lugar desde que o Homem aprendeu a pagar para viver. Aquela quarta feira, do mês de fevereiro, logo após o Carnaval, poderia ter sido igual à rotina de todos os dias santificados pela labuta da vida. Aloísio, um odontólogo iniciando sua carreira, despede-se de sua mãe dizendo: “Mãe, volto logo, beijos, ah, não se esqueça de Tandera, ela ainda não comeu a ração”. Sua mãe idosa despediu-se do filho com um peso no peito, contudo limitou-se a entregar tudo nas mãos de Deus. Ela era uma evangélica de origem puritana, muito apegada às suas raízes. Você sabe, raiz é carne viva. Aloísio acordara aquela manhã muito preocupado com Júlia, sua namorada, esta não havia ligado a noite anterior, e o jovem dentista estava pensando que ela o passara para trás com seu colega de turma, com Dr. Eduardo.
Ao chegar a clinica, Aloísio dirigira-se imediatamente ao seu consultório. Dona Quícia, sua auxiliar, já estava no recinto, como de costume, esta desejou-lhe um bom dia, ao qual não tivera resposta; era um daqueles dias para Aloísio.
- Dr. Aloísio hoje só temos quatro pacientes pela manhã. Um canal, duas obturações, e uma extração. Disse Quícia com o seu jeito de moça tímida.
- Tá bom, Dona Quícia, mande entrar o primeiro paciente. Feche a porta ao sair. Aloísio agiu como sempre, bem, quero dizer, quando está com problemas com Júlia.
Seu primeiro paciente era um senhora de trinta e cinco anos, branca, cabelos castanhos claros que caíam sobre seus ombros. Seus olhos eram verdes, eram duas pedras preciosas encravadas numa face simplesmente linda. Sua boca era de um corte tão perfeito que o dentista de Uberaba ficou por alguns segundos admirando aquela obra da natureza generosa.
- Abra bem a boca, vamos ver, tem doído muito? Perguntou o médico.
- Às vezes. Respondeu-lhe Patrícia.
-Vou dar anestesia e logo em seguida começo o canal.
A cadeira onde Patrícia estava sentada estava quase na horizontal e a cabeça da jovem senhora estava praticamente entre as pernas de Aloísio.
- Ah..., abra a porta, deixe-me colocar este algodão aqui.
- Dr. Aloísio... O senhor sabe que confio muito no seu trabalho. Você tem um jeito todo especial de tratar os pacientes.
Patrícia levantara a cabeça e olhou Aloísio nos olhos. O rapaz não se conteve e devolveu-lhe o gesto, olhando-a como que tentasse despi-la naquele momento. Os homens são assim, quando vêem a fêmea seus instintos de caça são acionados. Sempre foi assim, até comigo, nos meus dias de juventude e vigor. Em vez de anestesia na boca de Patrícia, Aloísio aplicou-lhe vários beijos consecutivos cada um mais forte em uma seqüência crescente. A moça abraçou-lhe roçando seu delicado corpo no dele. Ambos se fundiram por alguns minutos de insanidade e paixão arrebatadora. Esse velho viu quando Quícia abriu a porta e entrou sem malícia no recinto. Os dois estavam em gozo intenso. Totalmente tomados até ela bater a porta ao sair.
- Desculpe-me Dona... eh, Patrícia, perdoe-me . Foram as palavras do dentista.
- Perdoe-me também Aloísio, Foi, sei lá... Disse a paciente que fora fazer um canal.
Aquele fora um dia muito difícil para o jovem rapaz. Às cinco da tarde, ao tomar a estrada de volta a sua residência ele depara-se com sua amada Júlia em um cruzamento de um sinal próximo a casa de um grande escritor. Este homem deu tudo que tinha aos pobres e mesmo depois de sua morte, suas obras alimentam muitas bocas. Este velho, sempre quando está em Uberaba dá uma passada no local. Isso me traz muitas lembranças.
Ele avista Júlia e liga de seu celular pedindo-lhe que pare o carro. Júlia parou seu carro e Aloísio parou o seu logo à frente. Caminhou até o veículo da moça carregando consigo seu rosto fechado. Entra no carro dela e diz:
- Quer dizer que consegui te flagrar, certamente estava com Eduardo, o seu doutorzinho?
- Meu bem, não é isso, estou vindo da casa de tia Madalena ela me pediu para olhar as crianças até ela voltar, e ela atrasou-se no trânsito.
- Olhe sua gata tinhosa, cheia de truques, desta vez você não me engana. Gritou Eduardo saindo do carro com muita fúria.
Júlia gritou e buzinou algumas vezes, mas foi em vão. Seu carro desapareceu entre os outros. Ela o perdera de vista. Eduardo dirigiu sem ver nada a sua frente, sua raiva e seu coração cheio de desconfiança despertaram nele um comportamento suicida. Ele nem sabia mais onde estava quando o farol de um caminhão ofuscou sua visão fazendo-o sair da estrada e entrar violentamente em um matagal. Ele entrara rompendo a cerca em um ponto da estrada em frente a um posto de gasolina. Saiu de seu veículo totalmente atordoado e com alguns ferimentos leves no rosto, caminhou tropegamente até cair próximo a um riacho. As pessoas do posto de gasolina foram até o carro, mas não o encontraram. Sabe, existem coisas que o ser humano encarnado não entende, Aloísio estava deitado em uma grama verde com seu rosto voltado para a lua cheia e ninguém o viu. Este velho estava sentado num tronco de árvore velha, caída pela força da correnteza fumando seu cachimbo, isso eu garanto, a água do riacho começou a fazer círculos concêntricos, e eu vi com meus dois olhos quando a cabeça de uma mulher muito bonita se levantava bem no meio do redemoinho de água. Era minha mãe Oxum que havia vindo saldar a lua. “Ora yê yê ô!” Disse eu. Sua veste era amarela, da cor da lua, toda cheia de estrelas prateadas e cobria-lhe o corpo até os pés. Por onde ela passou deixou um cheiro suave de flores silvestres e alfazema. Respirei fundo e meus olhos derramaram lágrimas de emoção. A fumaça de meu cachimbo serpenteava ao céu, por isso fechei os olhos para descansar perante o Rei, o dono das estrelas e dos astros brilhantes, meu Pai Olorum. O jovem Aloísio não se mexia estava em sono profundo. Ele e a paisagem do lugar formavam um todo, um recorte inteiro de um momento único em uma vida. A Cabocla das águas doces senta-se sobre uma pedra à beira do riacho debaixo de uma árvore cujos braços abraçavam uma parte do mesmo. A lua estava forte, digamos exuberante. O velho Joaquim fez uma prece e a pedra de Oxum treme como eletricidade. No mesmo instante Joaquim vê a casa de Aloísio e sua mãe fazendo o que todos os dias fazia. Ela lia o livro santo, o texto dizia: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e eu vos aliviarei”. Após a leitura do texto a senhora de Uberaba orou a Deus dizendo: “Meu Deus eu vou a teu encontro e com meu filho, livra-o e guarda-o”. Joaquim chorou muito. De lá, sim da pedra de Oxum saia à vibração mais doce que um encantado já vira; algo de um amor imenso. Como por corrente elétrica, meus pensamentos foram ligados a Aloísio. Os seus pensamentos e os meus pensamentos foram fundidos. Aloísio abre os olhos e vê o mundo, o céu, primeiro, a lua, o riacho, a grama, as árvores, e bem longe um carro com o farol ligado. Pensou: “Onde estou?” “Que lugar bonito é esse? “Os grilos cantavam e havia um ar de segurança algo como não há perigo. Aloísio olhou à sua esquerda e viu uma pedra de rio e perguntou-se: “Há quanto tempo ela está aqui?” Aloísio pensou na resposta, “Algumas milhares de eras”. “Puxa minha idade são 23 anos. Sou ainda uns segundos perante esta pedra”. “Tudo aqui ao meu redor está aqui, para que? Para que vejo tanta beleza?” “Qual o sentido?” Continuou:
- Acho que a pancada na cabeça me deixou tonto.
- Você não está tonto.
- Não?
-Não. As perguntas foram reais. Um momento de inspiração.
- Não foi nada disso. Perguntei o que sempre pergunto. Aliás, isso tudo é bobagem mesmo.
- Não é bobagem. Pergunta sobre os sentidos é lógico. A razão deve cogitar sobre a causa de todas as coisas, mesmo que algumas não tenham causas necessariamente.
- Não, não sou eu que estou pensando. Mas faz sentido. Tudo deve ter uma causa.
- Claro, há uma causa porque você está aqui. Não?
- Sim, Há.
- Onde está Júlia? Deve ter se preocupado com você, a forma como você saiu, ela não teve a menor chance de defesa, nem você. A força e o sentimento de vingança cegam as pessoas.
- Eu fiquei cego, sabe, não vi nada.
- Foi mesmo, e agora estou aqui.
- Sim, você está nas águas doces aquelas que são boas para banhar.
- Júlia pode nem ter feito nada, eu não sei os fatos.
- O passado deve ser esquecido.
- Sim. Eu a amo, E o que houve foi quando a gente nem namorava direito. Era tudo recente.
- E lá no consultório? Eu violei a lei. A Mulher era minha cliente.
- Sim, era.
- Mas a culpa só mostra a falha e depois?
- Sim e depois?
Quando Aloísio falava consigo mesmo, ou melhor, com Pai Joaquim, o frentista do posto chega com Júlia, este a havia ligado com o celular de Aloísio que fora deixado no carro. Ele não a viu. Mas ela o viu falando sozinho e sabia que ele estava delirando. As palavras lhe foram agradáveis, ela o abraçou e o ajudou a ir até seu carro estacionado no acostamento. Os dois se foram, certamente rumo as suas casas. O velho ficou só. Oxum levanta-se de forma suave e deita-se como uma sereia levemente na cama do riacho. Junto com ela outras criaturas minúsculas como grãos de areia descendo rio adentro. Oxum foi-se. Pai Joaquim ficou. Segundo o relato do velho, a mãe do rapaz fechara o livro santo às sete e meia da noite. E mãe Oxum, foi dormir na mesma hora. Mas o rio que corre não molha o mundo todo?” Num sei, pensou o velho”. Mas esta é mais uma estória fora de hora de contar.

2 comentários:

  1. Seu texto meu amigo, faz o povo pensar nos valores e nas convenções religiosas impostas pela maioria. Sua arte dialoga com o real e o concreto, com a ficção e a realidade. Você coloca o mito afro de uma forma gostosa sem proselitismos e sem ferir outros credos. E de quebra o texto abre um debate novamente sobre o pré-julgamneto que fazemos em função de nossas certezas.

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  2. Caro Roosevelt.
    Seus textos merecem ser publicados num livro. O seu emrpeendimento literário, apesar de ter em comum com a escrita de Jorge Amado, leva a lugares diferentes. Enfim, é algo muito peculiar e novo. Merece publicação em grande escala.

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