Foucault abre o capítulo intitulado “O corpo dos condenados”, de sua obra “Vigiar e Punir” com a narração da execução pública e aterradora de um condenado por parricídio, em 1757, chamado Damiens.Segundo a narrativa, o seu corpo seria atenazado, queimado, puxado e desmembrado e ainda, em seguida,reduzido a cinzas e jogado ao vento.
O filósofo francês segue apresentando excerto de um regulamento redigido por Léon Faucher para a “Casa dos jovens detentos em Paris”, datando de três décadas posteriores ao fato supracitado. O teor deste regulamento é bem mais brando, e inclui, pelo contrário, o trabalho disciplinar e duas horas diárias de educação escolar.
Embora não sancionasse o mesmo crime, o regulamento acima descrito pode ser tido como um anúncio das transformações no âmbito penal do final do século XVIII e de todo o século XIX, que Foucault caracterizará como uma distribuição da”economia do castigo”, na Europa e nos Estados Unidos. Embora afirme se tratar de uma discrição ou certa sutileza na “arte de fazer sofrer”, fazendo desta um prática velada, o filósofo ressalta a extinção do suplício e da espetacularização dos castigos físicos. Isto, aliado a transformações como o caráter agora corretivo da pena, códigos públicos etc., fez o corpo deixar de ser alvo principal da repressão penal. O autor observa ainda que tal espetacularização paradoxalmente invertia o modo pelo qual os agentes envolvidos na execução eram socialmente vistos. Pois os que representavam o poder do Estado, juízes carrascos etc. passavam a ser os vilões, enquanto, muitas vezes, os condenados passavam a ser vistos com certa comiseração. As execuções e humilhações públicas foram se tornando de forma gradativa socialmente condenáveis.
Foucault observa, então, que o temor de infrigir a lei passa a emanar da possibilidade abstrata de punição, a espetacularização presencial e diária passa a ser vista com tanto repúdio que a Justiça já não a tem como ostentação de seu poder e sim como algo a que ela deve evitar ou relegar a outros setores , sob pena de reprovação social. A Justiça passa então a querer a imagem pública de entidade que não procura punir; e sim corrigir.
Deste modo, a pena capital, por exemplo, em que idealmente não há humilhação nem disposição arbitrária do corpo do criminoso passa a ser disseminada, se passa até a pensar no aperfeiçoamento técnico para a aplicação de tal, pena, como a guilhotina, por exemplo. Todos estariam submetido a esta pena, até então exclusiva aos nobres, independentemente de classe social. Entretanto, segundo Foucault, embora a espetacularização do suplício tenha, de fato, sido extinta - o que não se deu num só momento em todos os países -, a prática da tortura, ainda que de forma velada, e a morte penal são fatos que invadem dias atuais.
O filósofo francês prossegue observando o deslocamento que houve da punição corporal à puniça da “alma”. O sistema penal, embasado até mesmo em suporte científico, preocupa-se hoje em dia, entre outras coisas, com a qualificação não só do crime, mas como da patologia mental dos indivíduos , levanta todas as suas procedências nos tribunais e tenta lhes prescrever o que, segundo Foucault, “eles serão, ou possam ser”. Desta forma não há só um julgamento da eventual infração, mas também da “alma” dos infratores. Diferente da Idade Média, quando da instituição do inquérito, em que se apuravam fatores objetivos e generalizáveis, o juízo penal hoje em dia avança na busca de revirar a causalidade específica a cada indivíduo. A isto, Foucault irá adicionar que a própria apreciação judicial acerca da loucura, no exemplo específico do código penal francês de 1810, foi primitivamente fator de exclusão de culpa e, posteriormente, imputador de uma pena no sentido de que esta fosse “corrigida”, “tratada”, “normalizada”.
O deslocamento do objeto da punição traz outros agentes à realidade penal, como a figura do psicólogo,do educador etc. que ajudam a diluir o poder de julgamento até então tão concentrado nas mãos do juiz, embora nenhum daqueles tenha o poder direto de julgar, contribuem de forma técnica com a decisão acerca do teor e da tipologia da pena a ser prescrita. Foucault chega então à conclusão de que em certo momento “a operação penal se carrega de muitos elementos extrajurídicos.
Depois de expor seus objetivos e o método do seu livro, Foucault passa por Rusche e Kircheimer, pensadores que correlacionaram os sistemas produtivos e o caráter das penas ao longo da história. Relata também que o corpo foi tratado exaustivamente pelos historiadores do ponto de vista da unidadepuramente biológica da existência, mas chama a atenção para o contexto político em que este corpo está inserido, o que corrobora sua forma de análise. O filósofo francês chega então á conclusão de que o corpo ao longo da história não só recebe intervenções no sentido da produção, como deve haver uma submissão daquele, que não é dada apenas sob forma de violência ou ideologia, mas de outras formas tão ou menos sutis. Este “corpo político” dentro da microfísica do poder é o que interessa a Foucault.
Percebemos, e esta é a nossa opinião, que hoje em dia existe uma espetacularização em torno do crime encabeçado pela mídia. O que há agora é a qualificação do criminoso, o vasculhamento de toda a sua vida pregressa e um tratamento do crime que tenta apresentá-lo à sociedade em formato de novela. O caso dos Nardoni foi um dos mais famosos neste sentido. Houve uma novela em que se evidenciou um motivo para mobilizar o interesse de toda a população, o suposto assassinato da criança, os vilões, o pai e sua esposa, e o herói, o promotor. E houve também um final tal qual novela global, com direito a transmissão ao vivo e filmagem digna de Copa do Mundo. Mas apesar da condenação, percebeu-se, simbolicamente, por exemplo, quando a população esmurrou o carro que transportaria o casal à penitenciária, que ficou um gosto de impunidade por parte da sociedade, o desejo velado da aplicação de suplício ou Lei de Talião pode ser percebido. É como se a sociedade, de um modo geral, quisesse desfazer os arranjos que extinguiram , ao menos de forma explícita, a crueldade das penas.
É o velho jargão do senso comum “direitos humanos para humanos direitos” que infelizmente aparece soberano na opinião de massa, e muitas vezes, a população não tem ideia dos jogos de poderes que precedem as decisões criminais e a diluição da aplicação das penas como verdadeiros arranjos de manutenção política, como muito bem explicou Foucault.
Josua,
ResponderExcluirEsse texto me provocou uma repensada em muitas das ideias trazidas pela ótica do que eu concebo como torto, ou seja, a de encarar os valores como vulneráveis, e por isso mesmo entortados, isto é, inesperados, contingenciais, e ao mesmo tempo um olhar que entende que, apesar da vulnerabilidade dos valores, existe uma lógica construida por uma espécie de linhagem valorativa que os humanos aprendem ao longo da história.
Como você colocou nesse trecho excepcional
""apesar da condenação, percebeu-se, simbolicamente, por exemplo, quando a população esmurrou o carro que transportaria o casal à penitenciária, que ficou um gosto de impunidade por parte da sociedade, o desejo velado da aplicação de suplício ou Lei de Talião pode ser percebido. É como se a sociedade, de um modo geral, quisesse desfazer os arranjos que extinguiram , ao menos de forma explícita, a crueldade das penas."
Como se nota, a mudança de ótica acerca do crime é uma prova evidente de que o humano o tempo todo se encontra em modificações, no entanto, o fato de você trazer a relação da continuidade de um castigo velado, ou como você disse, "a prática da tortura, ainda que de forma velada, e a morte penal são fatos que invadem dias atuais", mostra como apesar das modificações, a história da humanidade não passa por mudanças extremas. É como eu falei no meu texto "Solidez Fluida": há modificações, mas não há mudanças.
Muito bom seu texto
Josua,
ResponderExcluirAgora, preciso que você me esclareça uma coisa, caso o livro tenha trazido.
Como você mostrou muito bem, apesar das penalidades mudarem de roupagem, isto é, transferindo a penalidade de uma esfera macro, física, para o individuo, no intimo existe uma lei de talião que nos move. Certo?
No entanto, como você bem explanou, houveram situações propicias para essa redefinição de conceitos acerca do crime. Se houve situação, é por que houve uma aceitação e uma mudança cultural capaz de alterar essa situação. Certo?
Por que, mesmo o Estado mudando seu discurso acerca do crime para atender aos anseios sociais, ele terminou modificando uma lógica que a humanidade não estava preparada totalmente pra aceitar? Onde ficou esse abismo?
Ou seja, de um lado um estado que atende as mudanças valorativas, e de outro um estado que modifica a questão da penalidade de forma a não ser aceita pelo social a todo instante. Saberia me explicar isso? Não sei se me fiz entender.
Caro Vina, obrigado pela interessantíssima questão. Esta bruta flor do querer que habita nossos corações ocidentais é algo muito interessante a se estudar no âmbito penal (assunto em que estou dando os primeiros passos).
ResponderExcluirDepois do trauma brasileiro da ditadura militar, houve um enaltecimento ainda maior aos direitos humanos, mas cada vez mais boa parte da sociedade vem-se manifestando contra o princípio da intervenção mínima do Direito Penal. Eu estava conversando com uma juíza ano passado e ela tratou o garantismo penal, por exemplo, com tom altamente pejorativo. Mas em relação aos suplícios em si, creio que a sociedade atual esteja fisicamente longe do odor que emanava dos rios de sangue de supliciados em Paris naquela época, por exemplo. A própria sabedoria do que estaria implicado na aplicação da pena de morte, por exemplo, poderia afastar o apreço popular que se vem notando no brasil em relação a esta. Eu estava lendo um dia desses sobre uma experiência nos Estados Unidos. Algumas pessoas foram convidadas a ler um informativo sobre as reais consequências da pena de morte. Antes de terem contato com este escrito, 51% das pessoas apoiavam a pena de morte, depois de lerem-no, o apoio desceu (de forma imediata) pra 39%.
Lembremos que no auge das campanhas pela extinção do suplício, havia nomes como Voltaire e Rousseau, porém, mais importante neste sentido do que estes, havia um italiano chamado Cesare Beccaria, que sintetizou a produção destes dois e mais alguns numa linguagem para o povo. Ou seja, talvez, dados estes dados, seja uma questão de esclarecimento. Mas, será que após a calmaria trazida pelo esclarecimento não sentirá o povo falta de uma violenciazinha? AH... Bruta flor do querer....
Josua,
ResponderExcluirhummm muito interessante a sua argumentação. É foda, mas quando vejo essas coisas eu cada vez mais me convenço de que o humano é uma parte discursiva se lambuzando com os ideais eticos, "civilizados", e uma parte faminta pela agressividade animal. Os conceitos e as vacinas mudam, mas a raiva do animal não adormece.
Mais uma vez nosso caro torto josué maia nos taz um texto que nos instiga a reflexão: Sera que a tão elogiada civilização conseguiu mesmo civilizar a besta fera? Parece que Foucoult diz que não. Nosso amigo torto Freud também. E joaquim concorda com eles... Parabéns!
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