Era tarde de sábado quando o professor Tomaz estava em Propriá. Era mais uma noite de palestras sobre educação. Tomaz falaria sobre a educação inclusiva. Não apenas sobre a ideologia inclusão. Aquela que nos causa a impressão que em verdade as pessoas portadoras de atenção especial estão realmente sendo incluídas que as leis realmente atendem as necessidades deles. Mas também aquela que contempla as necessidades humanas de maneira integral, ou pelo menos, que mais se aproxima. A educação que tem sido estudada há séculos. Afinal como seria de fato educar alguém. Esse questionamento seria colocado na palestra que ocorreria à noite. O professor Tomaz falaria sobre a escola tempo integral, onde os alunos passariam o dia, e aquela que valorizaria a qualidade da aprendizagem e a remuneração do docente. A noite chegava à antiga cidade de Propriá, este lugar já fora chamado de Urubu, era seu nome na época da expulsão dos holandeses de Sergipe. Tomaz admirava a paisagem e olhava o crepúsculo do céu de Propriá. Era muito bonito ver a noite surgir da claridade fraca da tardinha. Já apareciam pequenos pontos luminosos no céu quando Galdino desperta Tomaz fazendo-lhe uma pergunta:
- O professor deseja usar o microfone no apoio ou o segura na mão?
- Prefiro segurá-lo, pois posso me mover enquanto falo. Isso me alivia o stress.
- Entendo. Respondeu Galdino.
- Pois bem, vou providenciar. O professor não deseja comer ou beber algo? Continuou Galdino.
- Sim. Onde podemos ir? Disse Tomaz com tom de falo sério.
- Vamos ao centro. Disse Galdino.
Galdino pegou o carro e o levou para a churrascaria “Boi do Sertão”. Era um lugar agradável e cheio de gente. Havia mesas por todos os cantos e muita gente conversando. Galdino deixou o professor e foi para sua casa. “Não se preocupe”. Disse o mestre em educação. Tomaz ficou só na churrascaria, pediu um rodízio e aguardou o garçom trazê-lo. No canto da sala, defronte sua mesa havia uma jovem sozinha. Ela também aguardava o garçom. A moça furtivamente olhava para Tomaz. Ela queria chamar-lhe a atenção, mas temia uma reação negativa. Quando chegou a comida Tomaz acidentalmente derrama o copo de refrigerante na mesa. Isso chamou a atenção da moça e os dois se encontraram na visão de seus olhos. Tomaz riu e ela riu de volta. O professor, então, interessou-se pela moça e aproximou-se de sua mesa dizendo: “Posso jantar com você?”
- Por que não? Meu nome é Marcelle. E o seu?
- Meu nome é Tomaz. Disse o homem.
Tomaz e Marcelle conversaram durante o jantar. Falaram de tudo. Sorriram juntos. Parecia que os dois eram velhos amigos. Os olhos deles se cruzaram muitas vezes nos altos e baixos da conversa. Marcelle pareceu ter gostado muito de Tomaz, e ele sentia isso no brilho cintilante de seus olhos e na insistência dela com o seu cabelo. Tomaz agia como que estive voltado aos tempos em que conheceu Tânia, sua mulher.
- Por que você veio jantar sozinha? Perguntou Tomaz.
- Ah, eu estava me sentindo muito só em casa. Meu pai e minha mãe estão no Rio.
- Por que você não casou logo? O costume daqui é a moça casar cedo. Perguntou novamente o professor Tomaz.
Tomaz estava vivendo seu inferno astral. Seu casamento estava acabando. Sua mulher estava de caso com uma jovem do colegial. As duas andavam juntas o tempo inteiro. Tomaz, a princípio, não ligou, pensou ser apenas amizade. Mas o tempo não perdoa e os fatos foram surgindo aos poucos. Tânia e Bela era amantes. Um homem quando passa pela separação seu mundo se desconfigura, sua mente não fica legal. O consagrado professor universitário agora estava diante de uma linda moça. O coração do homem esqueceu-se de seus compromissos e deixou o tempo diluir-se na conversa tão agradável com aquela jovem.
- Professor!
- Sim?
- A palestra!
- Ah, sim, nem vi o tempo. “Marcelle foi um prazer”. Tomaz despediu-se da moça convidando-a para assistir a palestra, mas, ela recusou-lhe o convite com muita delicadeza.
Tomaz abordou a necessidade de uma relação dialógica entre professor e educando. Do mesmo modo, a escola e a família. A interação dos agentes envolvidos no processo, segundo ele, seria fundamental para a geração de uma escola mais próxima de nossa realidade social, e que pudesse atender as nossas necessidades. Uma mulher de cabelo curto, rosto miúdo como rosto de índio cearense levanta sua mão direita e pergunta:
- Como podemos aplicar a teoria interacionista em uma realidade com forte marca positivista e nova escolacionista? E ainda considerando as disparidades intelectuais entre as partes envolvidas? O auditório riu diante da longa pergunta feita. O barulho do riso foi depois seguido de um silêncio espontâneo para ouvir a resposta do estimado professor Tomaz.
- Meus caros, a pergunta é pertinente. Precisamos considerar as diferenças entre as partes. É fato que estudamos as teorias, mas, não conseguimos libertar nossas mentes do senso comum de que nossas tradições pedagógicas são válidas. O passado nos aponta uma história muito triste para nossa Educação. O Brasil tem um débito histórico na Educação. Isso nos deixou um legado muito vergonhoso. Gerações inteiras foram desperdiçadas em virtude dessas políticas que não contemplavam o ensino público como uma prioridade nacional. Ademais, o nosso processo histórico causou situações que possibilitaram a transferência de teorias de outros setores da sociedade para a sala de aula, transformando nossas escolas em pequenos quartéis. Eu me refiro à influência da educação militar durante a ditadura. Na educação militar ainda existe professor, e naquela época, muito pior. O sistema de hierarquia divide o espaço entre subordinados e oficiais. A realidade é regulada pelo conceito de méritos, e metas, de recompensas e castigos. Até hoje vivemos isso em sala de aula e não nos apercebemos que os professores ainda são o centro do processo. E a ditadura continua mesmo velada por um véu de liberdade. Bem, acredito que a interação se torna mais necessária em face dessa realidade colocada pela ilustre colega. É devido a nossa realidade que precisamos mudá-la. Se não dermos o pontapé inicial nunca o processo de mudança iniciará. Em respeito à disparidade intelectual, em todo lugar é sabido que as pessoas estão, em tese, em posição inferior em relação à docência, contudo, isso não significa que elas não sejam passíveis de um diálogo conosco. Até mesmo por que um agente do saber deve ter seus meios de se fazer entendido pela sociedade a quem ele presta serviço. O importante é que precisamos interagir com o universo do educando, dialogar com seus mitos, e passo a passo ajudá-lo a desvelar as contradições. Somente assim, como diria Freire, poderíamos estabelecer um diálogo cordial com o nosso próximo. E esse diálogo também deve acontecer entre todos os agentes sociais num âmbito maior da sociedade. O tempo da palestra acabou. Alguns professores saíram satisfeitos. Outros xingaram o pobre Tomaz, e ainda outros se referiram a sua amada mãe com palavras indevidas. Quem manda na cabeça das pessoas, não é?
O motorista da prefeitura levou Tomaz para a pensão. Esta se situava próximo a Igreja Matriz. Tomaz desceu do carro e dirigiu-se a portaria da pensão. Deu boa noite aos presentes e foi para seu quarto no segundo andar. Era um quarto pequeno com uma cama de solteiro, um frigobar e uma televisão com parabólica. As paredes do quarto eram pintadas de tinta verde claro como maçã verde e não havia quadros pendurados. Apenas formas geométricas feitas na parede enfeitavam o lugar. A cama era bem reforçada e com um colchão de primeira. O banheiro tinha chuveiro elétrico e vaso sanitário com ducha sanitária. Tudo do bom, porém, simples. Tomaz sentou-se na cama, pôs sua pasta sobre o criado mudo ao seu lado e coçou a nuca abrindo a boca. Ele estava cansado. No entanto, a figura leve e bela de Marcelle passa perante seus olhos como uma alucinação no deserto. Tomaz vai até o frigobar e tira uma garrafinha de água mineral sem gás. Bebe todo o seu conteúdo relembrando a conversa que tivera com Marcelle a menina de seus sonhos agora. E foi nesse espírito que o acadêmico adormeceu naquela noite de sábado do mês de julho de 2007.
- Menino! Desça da goiabeira!
- Não mãe, só um pouquinho!
- Tomaz! Vou chamar seu pai, viu?
- Não mãe, eu desço!
- Vá fazer alguma coisa! Não tem nada para estudar não?
- As contas de oito.
- Então, vá fazer as contas!
Em seu sonho Tomaz, obedece a sua mãe e vai estudar na cozinha. O rapaz sempre foi um bom menino, sempre cumpriu suas obrigações e nunca fora danado como os outros da sua idade. Ele só saiu de casa quando se casou com Tânia, sua atual esposa. Tânia era uma mulher linda. Poucas mulheres se comparavam a ela. Ela encarnava o que a mulher sergipana tem de mais bonito. Um rosto francês com olhos claros e um corpo de cabocla em forma de um violão. Ele era simplesmente louco por aquela mulher. Quando ele soube de seus envolvimentos com outras mulheres muito se decepcionou e estava passando uma bela crise existencial.
- Tomaz! Gritava sua mãe.
- Sim, mãe. Estou na televisão.
- Tomaz! Vá pegar meu remédio!
- Sim, mãe, eu já vou!
Uma vez na cozinha com a luz em penumbra, pois, depois das oito horas não se podia ascender às luzes naquela casa, Tomaz caminhava apavorado até a geladeira. Somente uma luz estava acessa em toda a casa, era a luz do oitão do lado direito que dava para o muro de seu Setubal. Tomaz pegava o remédio e o levava para sua mãe dormir enquanto seu pai roncava do outro lado da cama. Ele tinha quatorze anos nessa época.
- Mãe, amanhã, a senhora me deixa ir brincar no rio Puxim?
- Quem vai com você?
- Vai todo mundo do Ateneu. Todos os meus colegas.
- Tá bom! Vá! Mas, volte cedo, antes de uma da tarde!
Eram quatro horas quando Tomaz ouviu o som insuportável de seu celular. O homem levantou-se e foi direto para o banheiro. Ele estava lavando o rosto quando Galdino buzina o carro estacionado defronte a pousada. Tomaz pegou suas coisas e decidiu tomar café em Aracaju.
- Bom dia rapaz!
- Tá disposto professor?
- Ah, sim. Estou pronto para a luta.
- Não vai tomar café?
- Não, tenho muitas coisas para fazer em Aracaju. Eu tomo café lá. Vamos?
Os dois saíram de Propriá às quatro e vinte. Desceram até a rodovia e seguiram em marcha rápida até a cidade Princesa do Nordeste. É costume no mês de julho ter neblina na estrada, e isso dificultava muito a visão de Galdino, por esta causa, o rapaz conversou muito pouco com Tomaz no percurso até as cercanias de Siriri.
- Galdino! Tem família?
- Rapaz! Não tenho não. Tenho uma nega muito bonita. Estou ficando como dizem. Mal fechou a boca e meteu a mão direita no bolso de sua camisa e retirou dele uma foto colorida recém tirada. Nela estava uma moça linda vestida em um biquíni daqueles de arrepiar os cabelos. A moça era uma escultura, uma verdadeira obra do criador.
- Rapaz! Que avião, hein? Disse Tomaz com um tom de surpresa.
- Eh, a vida tem sido generosa comigo. Enquanto os dois se distraem com a conversa um carro estacionado na via os aguarda atenciosamente. Encostados nele estão duas pessoas. Uma mulher branca de seus vinte e cinco anos, e um rapaz negro de dezessete anos. A luz do celta da Prefeitura de Propriá incide sobre o carro estacionado e Tomaz de imediato vê Marcelle.
- Marcelle? O que houve? Perguntou Tomaz para Galdino que observa tudo em silêncio.
- Pare o carro Galdino! Vamos dar socorro à moça. Deve ser um pneu furado. Galdino estacionou o carro logo a frente do carro de Marcelle ou o carro do homem negro; não se sabe muito bem. Marcelle aproxima-se do carro pelo lado do passageiro e na janela do lado de Tomaz anuncia o assalto.
- Desçam do carro agora!
- Mas...
- Calado!
O rapaz negro põe sua arma na cabeça de Galdino e os quatro caminham na direção do matagal. Havia uma ladeira escondida pela vegetação. Os quatro vão parar numa moita grande. Por aqui as pessoas chamam de “loca do mato”. Ali não seriam vistos por ninguém, principalmente àquela hora, ainda não eram cinco horas. Os dois carros ficaram parados na pista.
- Tire tudo deles. Dinheiro, documentos, celular, anéis, o que tiver valor! O rapaz obedeceu prontamente à engenheira do plano. Tomaz ouvia tudo sem acreditar no que estava vendo. Marcelle o estava assaltando. Mas pensou ele: “É só um assalto, depois ela nos libera”. A ação toda durou uns três minutos. O rapaz mal encarado de feições esquisitas parecendo um Mané, como dizem por aqui, pergunta a Marcelle:
- E a desova será a onde?
- Como?
- A desova!
- Que desova?
- Você acha que eu vou deixar estes caras vivos? Eles me viram garota! Sou menor, mas não sou burro. Não quero mais voltar para o presídio de menores. Vamos! Diga logo! Está clareando!
- Não precisa matar os caras não, meu irmão. O que eu devia a você está pago, valeu?
- Num tem essa não mana. A lei é a lei, viu bandido tem que morrer! O rapaz tirou um pequeno objeto de seu bolso contendo um pó branco e o dá para Marcelle que depressa o cheira como muito entusiasmo e passa a mão no nariz.
- Acho que aqui está bom, você não acha?
- Lugar melhor do que esse num tem!
A polícia encontrou os corpos três dias depois em avançado estado de putrefação. A notícia da morte de Tomaz abalou a academia e toda a cidade de Aracaju. Durante meses procuraram pelo carro que Galdino dirigia e não lograram sucesso. Não se sabe até hoje quem e por que mataram o interacionista.
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