Introdução:
O presente texto não busca aprofundar um diálogo entre Paulo Freire e Vigotsky. Seu foco é mostrar que um diálogo é possível uma vez que os dois vêem pontos muito próximos entre si sobre uma educação do diálogo e da interação. Ambos fazem uso do marxismo, embora, com diferentes leituras, mas, com objetos idênticos: A construção do sujeito no mundo.
A visão freireana de Educação aponta para uma relação dialógica com a realidade. Muito nos lembra a visão maiêutica no sentido de se conhecer as coisas por meio de um diálogo com o real que pode ser um monólogo/diálogo quando nossa voz interior trava dentro de nós um diálogo questionador dos fatos ao nosso redor. Freire viu a necessidade de uma educação que desvela os fatos e depois propõe uma crítica que em sua visão é libertadora do homem. Assim a pedagogia libertadora é a pedagogia do diálogo, da crítica, da proposta racional para uma despolarização da realidade. (Barreto,1998).
A teoria do pedagogo brasileiro acredita que a tensão entre as classes pode ser menor, portanto, o mundo pode ser melhor. E está na Educação a ferramenta maior de um processo de libertação, pois é ela que liberta o homem do medo. O medo de não conhecer, o medo de não superar a condição de homem inconsciente/inocente, o medo da liberdade de um homem em vigília/consciente de seu mundo, de seu lócus, de sua realidade enquanto vida material e simbólica produtora de múltiplos sentidos, inclusive o sentido político. (Barreto, 1998)
Paulo Freire coloca o educando na condição de um ser político. Por esta causa sua teoria reflete sobre o papel da educação nas relações concretas ou nas relações materiais da sociedade. A educação libertadora é aquela que ver o educando em seu lócus político, é a educação da práxis, e a escola presente nesse lugar, busca nas contradições desvelar suas causas para que uma nova ordem surja entre os seres humanos. (Barreto, 1998)
Freire sustenta que devemos sonhar e acreditar em nossos sonhos. O sonho do educador é a paz entre as classes para que a exploração e a dominação cessem entre elas, para isso, é preciso educar ambas as partes. Não são apenas aqueles considerados acéfalos pelas classes dominantes que necessitam aprender a apreender a realidade. Pois a tensão fere os dois lados. As classes dominantes também precisam despertar-se da utopia da dominação plena de lucro total. Freire deixa claro que o mal-estar entre as classes é causado pela dominação irracional das partes mais privilegiadas. Toda dominação é irracional, contudo, Freire viu a inevitabilidade de sua existência e a necessidade de um diálogo entre os homens para uma superação possível desse mal-estar. Um mal-estar cultural, pois sua gênese está na raiz das relações do homem com o meio e na significação do espaço natural em espaço geográfico, portanto, o espaço da cultura. Freire e Vygotsky conseguem ver a cultura e a interação com ela um caminho para transformar a história individual e coletiva dos homens. Assim a educação é uma ação cultural na visão de Freire. (Freire, 1970)
A educação como ação cultural, no entender de Paulo Freire, se põe ou a serviço dos opressores, ou a serviço da libertação dos homens, de forma consciente ou inconsciente. Quando se põe a serviço dos opressores, não se encontra a possibilidade de superar seu caráter de indução; quando se põe a serviço da libertação dos homens, a educação se coloca em posição dialógica e se acha a condição para superar a indução. Segundo Paulo Freire a libertação é um processo doloroso, pois depende do próprio individuo expulsar ou não o opressor de dentro de si. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável pela superação da contradição opressor-oprimidos, que é a libertação de todos. A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo, não o opressor, não mais o oprimido, mas homem libertando-se. Um dos problemas mais graves que se opõe à libertação é que opressores e oprimidos precisam ganhar a consciência critica da opressão na práxis desta busca. Através da práxis autêntica que, não sendo "blábláblá", nem ativismo, mas na ação e reflexão é possível fazê-lo. Práxis é a reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela é impossível a superação da contradição opressor-oprimido (Freire, 1970).
Considero relevante nesse artigo destacar que o pensamento do teórico Paulo Freire contém marcas de Cristianismo. Ele acredita de fato que a humanidade por meio da educação pode ser mais justa e, portanto, alcançar o seu “paraíso” o qual na sua visão representa uma tensão menor entre as classes sociais. O que deve ser levado em conta nesse momento é o caráter utópico da teoria freireana em sintonia com a utopia cristã. O termo utopia nesse artigo refere-se à um fenômeno pertencente ao psiquismo humano e por isso presente na educação como construtora de sonhos, de sentidos, de significados. O pensamento cristão de Freire marca sua teoria com a presença do simbólico, do signo, do sonho. É claro que encontramos maior evidência dessa marca na forma como ele trata a palavra, a escrita e a leitura. (Freire, 1989)
A relação entre educando e educador no pensamento de Paulo Freire é uma relação mediada pelo signo, pela palavra, é uma ação cultural, pois, ocorre no meio cultural. É conseqüentemente uma relação de interação. O educador não se encontra em um pólo e o educando em outro. Os dois são agentes no processo tendo o intuito de problematizar a palavra, o discurso. A educação problematizadora se enquadra muito bem no pensamento do russo Vygotsky, pois este, também, entendia que a educação necessita de interação entre as partes. Freire enxerga nitidamente que a forma tradicional de educação, conservadora dos modelos e estereótipos culturais e sociais, a educação bancária, embora necessária para alguns, contém o discurso do dominador. E o professor, inevitavelmente, é o agente transmissor desse discurso. Para ele, então, aluno e professor necessitarão de libertação dessas amarras para que sejam salvos pela educação. A educação ocorre em ambos os lados por meio do diálogo entre aluno e professor. A palavra, a língua escrita e falada é o maior instrumento visto tanto por Freire quanto por Vygotsky no processo de ensino/aprendizagem
Para Freire, o aluno tem dificuldade no aprendizado das primeiras letras porque são alfabetizados usando palavras fora de seu cotidiano. O aluno não possui referências e nem uma relação psicológica com aquele signo lingüístico. Freire entende que educar sem considerar o cotidiano, o cultural é um caminho mais distante. É por outro lado um método que interessa a seguimentos outros da sociedade. O interesse existe porque sem a problematização dos fatos reais da existência, o homem torna-se vítima de si mesmo e de seu medo. O conhecimento do lócus no processo educativo é fundamental para que o sujeito se encontre no tempo e no espaço e perceba o mundo a sua volta, e é por isso que as classes sociais dominantes insistem em criar modelos de educação. Cada sociedade seguirá seu modelo, sua visão de mundo e de verdade providos pela a educação.
Freire apreendeu que a dominação é inevitável e que esta ocorre por meio da palavra. A língua internaliza os modelos de dominação e pode exteriorizar uma crítica para a libertação. Cabe, assim, a todos os homens dialogarem com essa realidade na consecução de seu bem maior. Contudo o bem maior é utopia, o próprio teórico admite. Mas ele insiste em sonhar.
Vigotsky também enxerga o valor da língua como mediadora e produtora de sentidos. O psicólogo russo viu que a criança aprende com a fala. É no diálogo com o adulto ou o professor ou um colega mais velho que ela desenvolve seu vocabulário e conhecimento do mundo. A escola para Vigotsky é o lugar da interação, do diálogo. Portanto um lugar do sentido, do significado, da palavra.
Freire e Vigotsky concordam que a interação mediada pela palavra é fundamental no processo de aprender. Os dois entendem que o discurso oficial tem caráter monológico. As ideologias das classes dominantes se transformam em monólogo, um diálogo de uma só via. A ordem das relações de poder e de dominação das classes privilegiadas é a soma total dos discursos produzidos e por ela transmitidos de forma monológica pela escola. Isso fica bem evidenciado na pessoa do educador. Somente ele tem o conhecimento na visão bancária de educação. Seus alunos são sem história, sem mundo. O educador é o agente do poder e portador do discurso oficial que legitimiza a condição de dominação. Tanto Freire como Vigotsky viram que a língua e sobre tudo a palavra é ideológica e transmite os genes da dominação. A educação deve, então, oferecer uma relação dialética com o signo e desmistificá-lo. Para tanto é preciso brincar com as palavras e ensinar as crianças palavras que falem de seu contexto histórico e cultural. Freire muito bem viu, que a cultura do educando deve ser considerada e com ela a história do sujeito aprendente. Os dois teóricos se casam muito bem nesse aspecto. A história e a cultura presentes nas ações pedagógica buscando situar o sujeito em seu mundo. Sem essa consideração o ensino continua sendo um monólogo, um recorte de algum lugar.
O psicólogo russo entendeu que a ontogênese do sujeito, a formação de nossa subjetividade e nossa personalidade é um fenômeno, sobretudo histórico-cultural. O sujeito é constituído de fora para dentro, ou seja, o sujeito é o mundo social internalizado no indivíduo cuja via maior do processo é a educação, e o espaço onde isso acontece é, principalmente, a escola e a educação formal que ela oferece. É óbvio que a preocupação primeira de Vigotsky foi mostrar como se constitui o sujeito, e como se estrutura sua máquina cognitiva. Para tanto ele trilha um caminho muito parecido com o nosso brasileiro Paulo Freire. Ele toma as relações sociais inerentes ao processo ensino/aprendizagem como referência para sua especulação psicológica e pedagógica. O sujeito interage com o mundo na pessoa do educador e a sala de aula torna-se um simulacro das relações contidas na sociedade. Ele não descarta outro tipo de aprendizagem: A informal. Ele vê nela uma via muito importante de aprender-se no mundo e sobre ele. O que une os seres cognitivos é a linguagem e sobre tudo a palavra, o signo/elo que une todas as mentes na reflexão sobre os fatos. Nesse processo, tanto se constrói um corpo de palavras (léxico) como se reflete sobre o uso das mesmas e sua importância para o desvelamento da realidade.
Paulo Freire (1979, 2002) ressalta a importância e a necessidade de se entender a existência humana a partir de sua substancialidade, ou seja, o reconhecimento de todos os homens como verdadeiros sujeitos históricos. Os atributos dados aos homens não podem, assim, sobrepujar o dado mais importante da existência humana: A sua presença no mundo como sujeito. Tomando como referência o ambiente cultural onde o homem nasce e se desenvolve, a abordagem vigotskyana entende que o processo de construção do conhecimento ocorre através da interação do sujeito historicamente situado com o ambiente sócio-cultural onde vive. A educação deve, nessa perspectiva, tomar como referência toda a experiência de vida própria do sujeito. Vigotsky tornou-se o principal expoente da abordagem psicológica histórico-cultural, que concebe o sujeito socialmente inserido num meio historicamente construído. Enquanto veiculador da cultura, o meio se constitui em fonte de conhecimento. Vigotsky empenhou-se na busca do entendimento sobre os mecanismos pelos quais a cultura torna-se parte integrante da natureza de cada ser humano. O sujeito para o médico russo é o sujeito do conhecimento e o sujeito psicológico que atuam no meio sócio-cultural. Que sofre sua ação e nele imprimem a sua.
As semelhanças entre os dois pensadores são muito grandes sendo, então, possível um diálogo longo entre ambos. O sujeito é um dos pontos que os aproxima de forma muito radical. O sujeito em Vigotsky é o exterior que se interioriza, é o social que se torna pessoal, que se torna substância internalizada em um lócus inexistente. O lócus é inexistente porque para ele a pessoa não existe em um lugar fixo de fato, é criação das relações sociais e do processo de maturação psicológica. A proporção em que ocorre o crescimento filogenético do indivíduo a ontogênese também ocorre. Assim, para Vigotsky o sujeito é uma mente social, e, portanto, não é substância propriamente dita. A criança é uma tabula rasa com tendências ao social e seguirá essa tendência cabendo a escola usá-la para a educação da mesma.
Bibliografia
Barreto, Vera. Paulo Freire para educadores. São Paulo: Arte e Ciência, 1998.
Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 17a. Ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
Freire, Paulo. A importância do ato de ler: Três ensaios que se completam. São Paulo, Cortez, 1989.
Vigotsky, Lev Semenovich. Formação da mente social. 7a Ed. São Paulo, Martins Fontes, 2007
Querido Roosevelt,
ResponderExcluirMeus parabéns pelo seu texto. Você conseguiu através de uma linguagem fácil e ao mesmo tempo rica, trazer elementos bastante pertinentes entre esses dois grandes pensadores da educação.
No entanto, como educador da rede estadual de ensino, eu posso dizer que é muito dificil se chegar a estabelecer um diálogo espontaneo do docente com o dicente. Infelizmente em nosso Brasil, as distancias entre esses dois universos são muito grandes e a necessidade de elencar fetiches por parte dos educadores também é muito forte. Essa tendencia ao fetiche provoca uma relação opositiva entre os que sabem e os que não sabem, entre os que gostam de coisas boas e os que não gostam. Um diálogo no sentido mais preciso e fiél do termo, encontra-se a infinitos anos luz para se realizar.
Outra coisa: fazer o aluno enxergar as contradições para se quebrar uma determinada ordem e provocar novas mudanças também é cômico em uma realidade brasileira na qual sequer os professores possuem um reconhecimento critico acerca de sua história e de suas exigências politicas. A falta de conscientização para se questionar a atual ordem já começa pelos próprios docentes que muitas vezes não passam de pessoas acomodadas, apaticas, desinteressadas, que não lêem,não se atualizam, não gostam de escrever, e que assim como os alunos, encontram-se imersos a uma mesma precária formação histórica crítica da realidade que o cerca.
É isso meu caro Vina,
ResponderExcluirInfelizmente o Velho Feire sonhou muito. por isso que acho um tanto utópica sua idéia. Generosidade e boa ação não nascem em árvores. É preciso pensar de forma realista. Contudo, o que ele coloca sobre a necessidade de uma aproximação, ou um nova abordagem acho válido. Como o uso de termos comuns ao educando, e quem sabe termos presentes no imaginário brega.