As idéias que eu vou propor neste texto são resultantes das minhas experiências na Universidade Federal de Sergipe. Na UFS, existem dois blocos departamentais da área de humanas. Um é o das chamadas ciências sociais aplicadas e o outro é o de ciências humanas. É desse último grupo que pretendo falar, afinal, por trabalhar mais diretamente com as subjetividades, ele influencia nos julgamentos referentes aos gostos e aos valores sociais enquanto profissionais atuantes no mercado.
Por eu ter vindo desse grupo, o que pude observar é que uma parte dos alunos pertencentes a ele sente uma maior necessidade de discutir sobre questões estéticas justamente por se encontrar de forma mais recorrente em contato com esses debates. Nos outros grupos, sem querer fazer regras gerais, o consumo com as ditas produções massivas é feito de forma muito mais despreocupada com questões que implicam valorações estéticas.
Atualmente, com o sistema de cotas implantado, o Campus passou a ter um número maior de indivíduos dos setores menos favorecidos. Porém, um espaço social é demarcado por discursos que estabelecem a posição e a diferenciação de um grupo em relação aos demais. Portanto, acredito que mesmo havendo uma maior heterogeneidade de classes, o Campus continua legitimando o discurso e as estéticas historicamente provenientes dos meios acadêmicos.
Pois bem: dentro do grupo das ditas ciências humanas, o que pude notar é que existe uma necessidade em se catalogar as ditas produções massivas antes consideradas “lixos culturais” como a música brega, por exemplo. Por outro lado, um indivíduo desse grupo ao afirmar que possui uma banda de vanguarda, por exemplo, logo é visto de forma depreciativa, como se o fato de se ter uma banda de vanguarda implicasse uma arrogância.
O que se nota é uma inversão de valores, pois enquanto antes se utilizava o termo vanguarda para afirmar um lugar de prestígio, o termo brega servia para se excluir tudo que não tivesse prestígio. Hoje em dia podemos perceber uma aceitação para o brega e uma repulsa pela afirmação de ser vanguarda. No entanto, se observarmos bem, apesar das inversões, o brega continua sendo colocado em uma posição de inferioridade, enquanto a vanguarda preserva o seu lugar de prestígio.
Pergunto: por que atualmente existe essa inversão de valores? Acredito que isso seja fruto de um discurso da culpabilização do opressor. A universidade sempre se revelou elitista aos ditos setores populares. Esse abuso do conhecimento terminou provocando um retrato nefasto para ela mesma. A única forma de converter essa autodestruição é negando aquilo que historicamente representou a sua opressão e aceitando aquilo que a fez ser conhecida pela sua opressão.
Vale lembrar que o termo brega aplicado nas musicas surgiu como forma de classificar os produtos culturais caracterizados pela simplicidade temática e melódica. Esses produtos eram consumidos por setores desfavorecidos. Por não terem uma maior escolaridade, esse grupo social se identificava com os discursos da música brega por ela trazer linguagens ditas triviais e dentro de modelos previsíveis e preservados em sua convencionalidade.
Já a música de vanguarda era produzida dentro dos ambientes acadêmicos. Diferente da música brega, ela trazia um discurso que rompia com a literalidade dos discursos marcados por signos desgastados. Quem construía as manifestações de vanguarda era um público com escolaridade que compreendia a técnica da música, assim como detinha de um conhecimento vocabular amplo acerca da estrutura das palavras, tornando o discurso imprevisível e provocador.
Essa inversão de valores termina provocando uma confusão sem tamanho, pois mesmo havendo a culpabilização desse opressor, a forma como as riquezas materiais e simbólicas ainda são distribuídas faz com que esse grupo que se nega a se admitir opressor, continue sendo opressor. A inevitável distinção ainda produzida em um contexto desigual termina por manter as classificações excludentes em seu devido lugar apesar da aparente inversão.
Ou seja, por necessitar “limpar sua ficha criminal” o setor acadêmico aceita o brega e como forma de velar a desigualdade muitas vezes favorável a ele, nega a vanguarda. Por viver em uma realidade marcada por distinções, nega o brega por ele representar os setores periféricos; já a vanguarda, apesar de “repudiada”, é valorizada, pois reflete uma estética consumida por uma camada social privilegiada e por reafirmar o poder e o prestígio desse setor na sociedade.
Vou tentar colocar esse confuso trocadilho em uma realidade prática. Se eu falar que tenho o hábito de freqüentar os grandes teatros para admirar os experimentalismos musicais expostos por um artista reconhecido como vanguarda, sou logo adjetivado como uma pessoa “cult”. A palavra cult, estando associada a uma capacidade dita intelectual, é logo interpretada de forma pejorativa. Ou seja: ouvir música de vanguarda é ser cult, e, por conseqüência, ser arrogante.
Por outro lado, hoje em dia se é muito comum encontrar os chamados eventos bregas sendo consumidos por esse setor universitário. Mas como eu atentei mais acima, essa inversão de valores não ocorre de fato. Nesse tipo de evento, a música brega não passa de esteriótipos e se reduz a um espetáculo que serve para ridicularizar o povo. O valor à música brega, antes de ter sua importância reconhecida por ser parte de uma cultura, não deixa de servir à manutenção das distinções dos grupos.
Portanto, mesmo a música brega sendo apropriada pelos grupos acadêmicos, ela serve muitas vezes apenas como descargo de consciência para um setor que se culpabiliza pela sua histórica opressão, mas ao perguntar a esses mesmos indivíduos se eles admiram a música brega, temos como resultado respostas que justificam o seu consumo como forma de se divertir. Além disso, esses indivíduos tendem a caçoar os repertórios dessa estética.
Com relação à dita música de vanguarda, mesmo esse grupo provocando reações de reprovação ao dito cult consumidor dessa estética, não é essa música que passa a ser taxada de forma ridicularizada. Ao contrário. Apesar de parecer repudiada, é essa música que para ele, diferente da música brega, tem um valor inestimável no acervo da história da música, e é ela que representa o verdadeiro patrimônio intelectual e cultural da sociedade.
Portanto, o fato de se valorizar a música brega, não necessariamente significa privilegiar a música brega, assim como, o fato de se condenar a vanguarda, não significa necessariamente desvalorizar a vanguarda. Se de um lado nós encontramos a necessidade em se resgatar a produção musical popular; do outro, nós encontramos a necessidade do setor oriundo dos meios acadêmicos em não querer perder sua prestigiada posição social.
Muito bem colocado meu caro. Ficou bem claro a condição assimétrica das relações linguísticas. E como o direito a expressão depende muito do prestigio. Um fato curioso desperta o interior do discurso. O diálogo é um situação de existência; as partes tendem a troca, ao intercambio, ao jogo.
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