segunda-feira, 17 de setembro de 2012
ENSAIO SOBRE DIALOGISMO
Permitam-me os amigos dizer do homem. Procurarei ser breve para não irritar vossa razão com minhas preocupações sobre esse animal tão fabuloso e tão perigoso. Mas dizer do homem é uma imposição da natureza, uma vez que o processo evolutivo nos fez seres dizentes. E o dizer não cessa; o dizer sobre qualquer coisa é, na maioria dos casos, um dizer de forma irracional; é tão natural, agora, como foi a barbárie nos tempos idos de nossa história.
Observamos nas ruas, nas festas, nas reuniões familiares, nas expressões culturais, nas artes etc., que o homem está dizendo, o homem fala, dialoga com os outros. No entanto, nem sempre o sentido do dito por ele equivale ao dito que expressaria a verdade sobre alguma coisa ou algum fenômeno que se apresente. O dizer é um vício humano, as pessoas falam não por que sentem a necessidade de vibrar suas cordas vocais, mas por que precisam se relacionar com o outro. O homem tem uma necessidade de se socializar, de viver em intersubjetividade. Então somos seres dependentes do outro como se tivéssemos uma única alma – uma alma grupal.
A criança desde sua tenra idade apresenta seus feitos aos seus pais e aguarda deles um olhar, ou uma palavra de aprovação. A aprovação ou a reprovação vai determinar o estado de humor do infante. Isso é condicionamento, todos nós sabemos. Foi nessa época que também aprendemos que o outro, aquele pessoa que nem conheço em muitos casos, tem uma potência sobre mim. A mão do outro pesa sobre o sujeito. Os sujeitos se constroem e se destroem a depender da política estabelecida entre eles.
Foram os primeiros afagos, os primeiros mimos, as primeiras palavras, que me tornaram dependente daquele rosto que eu não sabia dizer o nome. Aprendi a priori a dizer “mãe”. Ali estava o bojo de todas as relações intersubjetivas, ali o sujeito estava sendo construído. Esse foi o momento de ouvir o dito dos pais e aprender com eles a dizer os meus ditos, ditos que refletem os anteriores. “Dona Maria, por que você come tripa?” “Como porque gosto, meus pais comiam, desde criança eu como, vou morrer comendo tripa!” A criança vibra as cordas vocais para dizer a palavra “mãe”, no entanto, levará anos para ela apreender o significado semântico desse termo.
Podemos dizer que dizemos sem saber o que dizemos. O falar é muito mais inconsciente de que a escrita. A necessidade de aquiescência ao grupo é bem maior que a preocupação de se procurar a verdade de nossas palavras. Somente o sábio procura dizer com sabedoria. O preconceito comprova isso: “Meu pai bebia cachaça e nunca teve nada, por isso eu bebo e estou bem, mas, esse povo que usa outras coisas é tudo bandido”. As coisas que o interlocutor se referiu foram as drogas. Ele acha que o álcool não é “as outras coisas” que ele se refere como más. Tudo porque o papai dizia daquele jeito. O comportamento social e o discurso do sujeito estão atrelados ao seu locus existencial, a sua história e seus mitos. Todos nós sabemos que o consumo de álcool é consumo de droga, pois, o álcool é uma droga tão letal quanto as outras; é isso que dizem a psiquiatria e a neurologia. Quem não sabe dos prejuízos à sociedade, a família e ao erário público causado pelo consumo regular de álcool? Qual o neurologista que não saiba dos malefícios que essa droga causa ao sistema nervoso central? Contudo o discurso da licitude dessa droga prevalece. Isso acontece por que temos a tendência a imitar os ditos e os comportamentos; temos a necessidade de não sermos reprovados pela maioria.
A expressão Durkheimiana “tecido social” aqui toma o nome de tela mental. O grupo constrói uma rede, uma tela que cobre o território onde ele se encontra, ali, o prestígio será fundamental para alguém poder dizer. Quem não o tem se limita a ouvir e depois repetir o que foi dito como sendo seu; como sendo algo natural. “Naquela floresta tem um monstro”. Todos do grupo tomarão esse sintagma como sendo verdadeiro assim como nossos jovens morrem para salvar a nação de seus “inimigos”.
Se a linguagem constrói o sujeito, então, os ditos sem validade empírica e racional são os maiores componentes da mente social, pois, foi com meus pais e amigos e depois na escola que aprendi sobre o mundo. E esta última, a escola, tem um discurso tão alienante quanto os demais. É na escola que aprendo que álcool não é droga, que o mundo deve ser como é, que essa ou aquela religião é legítima e outras não etc., a escola prioriza os ditos e a memória dos que tem o prestígio – As elites. O grande papel dessa instituição é engavetar cada sujeito na sua gaveta para que todos cumpram o seu papel. “Cada um de vós aceite de Deus a situação que te foi imposta. Se és escravo, escravo; se és livre, livre, pois Ele é o Deus de todos”. Foi Bourdie que viu isso ao analisar a escola pública francesa, imaginem se ele estivesse vindo para cá.
A massa reage de acordo com os ditos dominantes, e mesmo que haja subculturas, a mais forte prevalece. Ninguém se levanta sozinho contra o todo. Todas as revoluções contaram com a manipulação das massas. Assim, a ação inconsciente, o dizer inconsciente é perfeitamente natural, pois, essa é a nossa condição no mundo. Dialogamos, mas, na maioria das vezes pouco dizemos, pois, nossos ditos são os da tela que está sobre nós – a alma grupal.
Isso explica a temporalidade da lei. Há alguns anos atrás, quase dois séculos, era lícito ter escravos. Há alguns anos atrás, menos de um século, as mulheres não votavam. O adultério era crime. As leis mudam com o tempo, então, o que era errado passou a ser certo, o que era certo passou a ser errado. As leis existem para regular os comportamentos, contudo, elas também são ditos, são tão perecíveis e corruptíveis quanto os seus criadores. Então, a justiça que foi feita, passou, por força da história, para o panteão das injustiças humanas. Tola criatura do tempo que diz e depois desdiz! Esse é o homem, pode alguém confiar nele?
Observando o outro vi que os ditos são poderosos. Vi que apesar de seu vácuo, de sua insipiência ele exerce pressão sobre o outro de tal forma que eles se tornam verdadeiros e consagrados historicamente. Quem ousaria duvidar de nossa racionalidade? Quem duvidaria das ciências e das filosofias? Descartes entendeu que o recorte mínimo, e que o método mais eficaz, seria analisar parte por parte e ver as relações entre elas. Para ele a iluminação viria por via matemática. O objeto ficaria ali, recortado, seus pedaços sendo esmiuçados passo a passo até que o espírito humano enxergasse a episteme. Isso foi considerado ciência e ainda inspira a muitos pensadores e educadores. Mas, meus amigos o cadáver fala! O fenômeno se expressa e diz de si. O sujeito e o objeto epistêmico devem dialogar. E esse diálogo deve ter a via complexa – aquela que Morim chama de pensamento complexo! Todos os ditos são válidos desde que sejam tomados como ditos, como tentativas humanas. É no estudo dos ditos dos homens que encontramos as pistas para seguir seus passos. Assim, os ditos a priori, e os ditos a posteriori formarão outra rede; a rede do conhecimento mais próximo do racional. A realidade seria apresentada de forma mais nítida, bem melhor daquela de Platão que comparou o conhecimento a luz de Apolo, a luz do deus estatal. Não meus amados! Dioniso também precisa falar para que as bacantes retirem nossas mascaras e possamos nos ver como somos ou pelo menos como pensamos ser. E aí direi de mim ao mundo...
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Querido Roosevelt
ResponderExcluirÉ muito linda a sua forma de desenvolver a escrita. Mesmo trabalhando um ensaio, você não perde a sua expressão sensível e poética.
A forma como encaramos a realidade é resultante de inumeros ditos vindos de fora, ou seja, dos meios sociais onde exercermos nossas experiências com os outros, como também é resultante da miscelânea de ditos que misturamos em nosso próprio repertório.
Os nossos discursos, apesar de se apresentarem externamente de forma coerente e lógica, são como inúmeras pequenas raízes que vamos construindo em nosso pensamento, mas que essas raízes logo se articularão a outras pequenas raízes. É por isso que o nosso dito nunca representa a verdade dos fatos. O nosso dito resulta em uma cadeia infinita de signos que vamos construindo e misturando a esse emaranhado de semas e de valores sociais.
O que eu acho acerca das coisas, é algo que se encontra apenas dentro de uma limitação em alcançar o ideal das coisas, pois mesmo o que eu concebo como fato, rapidamente se desfaz em outras opiniões, me faz perceber o encontro de mim com minhas próprias contradições e com as contradições do mundo, uma vez que a realidade é justamente essa contradição.
A educação, se ao menos reconhecesse essa inevitável relação do sujeito com o meio e percebesse que cada meio resulta em vários ditos e que dentro desse meio existem vários indivíduos criadores e recriadores de infinitos ditos, saberia compreender a fala dos seus alunos, as motivações de cada um, além de não pecar em uma ilusória padronização de verdades como se todos fossem iguais e capazes de se submeterem as mesmas fórmulas e formas.
A educação deveria pensar esse diálogo não só como um caminho para a compreensão do aluno acerca de si e da realidade que o cerca, mas também como algo que implica insaciáveis alterações e visões de mundo. Se a educação partisse desse princípio, com certeza ela conseguiria pôr em prática a ideia de um conhecimento crítico, questionador, pois reconheceria que as opiniões de cada um, antes de conseguirem assumir uma conclusão definitiva sobre as coisas, seria algo em constante construção. O discurso seria visto como algo humano, ou seja, algo resultante de um processo, e não como algo capaz de atingir o ideal e a verdade única das coisas.