Dedicado a Rebeca Machado Leite
Para viver em sociedade, os indivíduos estabelecem entre eles códigos para poder se comunicar. Eu só consigo fazer com que o outro me compreenda, a partir do instante em que eu utilizo em meu discurso, palavras que já são conhecidas por ele. Se alguém me diz: “Geraldo torce para o flamengo” automaticamente eu compreendo o que essa frase quer me dizer. O discurso possui formas e significados que podem ser traduzidos no cotidiano social.
Por outro lado, essa sociedade, por ser formada por uma diversidade de grupos sociais, constantemente produz mudanças nas palavras e nos discursos. Ou seja, vivendo em sociedade, um indivíduo oriundo de determinado meio social termina por conviver com outro indivíduo de outro meio social. Com isso, eles terminam trocando valores, mudando discursos, agregando novas palavras com as do seu meio, gerando outras formas de se manifestar.
Com isso eu quero dizer que os discursos sociais, se por um lado trazem uma estrutura, ou seja, uma forma codificada capaz de fazer os indivíduos se comunicarem; por outro, os discursos sociais passam por constantes transformações por serem resultantes de diversas trocas estabelecidas pela pluralidade que permeia o social. As palavras, seus sentidos, e, portanto, seus discursos, só existem por transitarem entre o traduzível e o acidental.
É devido a essa relação entre a conservação e a mudança dos discursos que eu acredito que o óbvio e o esquisito devem ser apreciados no que se refere à escuta musical. Ao falarmos de música brega, por exemplo, pensamos em letras óbvias, repetitivas e repletas de signos conhecidos. Por outro lado, ao falarmos sobre as ditas músicas de vanguarda, rapidamente associamos essa estética à idéia de inovações discursivas, de signos desconhecidos.
Não é por que eu associo a música brega ao discurso estrutural e a música de vanguarda ao discurso acidental, que eu estou reduzindo-as a esses tipos discursivos. Ouvindo a música brega, também encontramos discursos que fogem do comum. Ouvindo música de vanguarda também detectamos discursos triviais. Contudo, não há como negarmos que em geral, cada forma discursiva é mais exceção do que regra geral em cada universo musical.
O grande problema é quando percebemos que entre essas duas linguagens estéticas existem formas de segregação tanto de um público quanto de outro. Se por um lado ouvimos do público-consumidor da dita música brega que a dita música de vanguarda é música de maconheiros, malucos, dentre outras classificações; por outro, o público da música de vanguarda vive geralmente a classificar o público da música brega de alienado, etc.
Acredito que aceitarmos apenas a freqüência do óbvio nos discursos das músicas bregas, caímos em um erro gravíssimo, visto que, por vivermos em uma sociedade composta por uma imensidão de formas culturais, os discursos passam por freqüentes rupturas. Não pensar assim é prejudicial, pois não estamos reconhecendo a inevitabilidade das trocas sociais, nem enxergando a grande riqueza da vida social que é a sua constante mudança.
Se acreditarmos apenas na freqüência do esquisito nos discursos das músicas de vanguarda, também caímos em um erro, uma vez que, por convivermos socialmente, precisamos de códigos, de significados que sejam ao menos compartilhados por um número regular de pessoas. Não vivemos em sociedade sem nos comunicarmos com o outro. Precisamos nos fazer entendidos, para que com isso, possamos realizar nossos projetos em meio à arena social.
O que eu estou querendo dizer com isso é que os ouvintes, ao optarem em viver reduzidos a meras classificações, só saem perdendo nisso tudo. O importante é sabermos ao menos ter curiosidade em conhecer novas linguagens estéticas, sejam elas mais voltadas para o óbvio, sejam elas mais voltadas para o esquisito, uma vez que, como eu disse mais acima, os discursos são compostos por esquemas e também por contingências.
Ao negarmos o óbvio, tendemos a não nos sentir realizados, pois ao encararmos o óbvio apenas como óbvio, passamos despercebidos por ele. Se deixarmos nos sentir com a obviedade das coisas, veremos que dela se revelam belezas. Às vezes, por evitarmos vasculhar e destrinchar o óbvio com mais detalhes, não percebemos que apesar dele está a nossa frente todos os dias, nos utilizamos e muitas vezes nos emocionamos com ele em nosso cotidiano.
Ao negarmos o esquisito, também tendemos a não nos sentir realizados, uma vez que, ao encararmos o esquisito pelo esquisito, também passamos despercebidos por ele. Porém, se deixarmos sentir o esquisito, veremos que ele nos revela muitas surpresas. Por muitas vezes tratarmos com descaso o esquisito, deixamos de nos dar conta de que a vida é feita de mudanças, e que essas mudanças são fundamentais para a história da humanidade.
Por exemplo: ao ouvir o trecho da música “Eu vou tirar você desse lugar” de Odair José, artista representante da música brega, que diz “pois quando o amor existe, não existe tempo pra sofrer”, pergunto: será que em algum momento em nosso cotidiano não fomos capazes de expressar e de sentir esse sentimento dessa forma? Apesar da simplicidade da construção discursiva, será que por ela ser óbvia por um acaso deixou de ser menos vivida?
Por outro lado, ao ouvirmos a música “Cabeça” de Walter Franco, artista representante da música de vanguarda, que em meio a uma mistura frenética de várias vozes diz: “segura essa cabeça que ela pode explodir”, apesar de soar estranha, não confere com o nosso cotidiano? Basta nos pensarmos em meio ao centro da cidade ao mesmo tempo em que nos vemos em volta de culpas, de várias vozes, propagandas, ruídos e informações.
Portanto, faz-se necessário se adentrar na infinidade das linguagens estéticas que rondam a sociedade. Deixando nossos preconceitos de lado, seremos capazes de perceber o quanto o óbvio faz parte de nossas vidas por vivermos cotidianamente em meio a discursos compartilhados socialmente, assim como seremos capazes de aceitar o esquisito por sabermos que é a partir dele que a cultura vive sua eterna magia da transformação.
Não quero com isso dizer que todos devem ouvir tudo. Cada um tem seu próprio gosto musical, assim como suas referências musicais que vão sendo apropriadas ao longo de seu hábito cultural vivido em sua realidade particular. Contudo, faz-se necessário ao menos buscarmos sentir novos discursos, até por que, querendo ou não, eles estão a nossa volta todos os dias de nossa vida e, portanto, precisamos deles, pois viver em sociedade é conviver com a diversidade.
Música brega ou música de vanguarda? Não. Música brega e música de vanguarda, afinal, eu respiro praticidade e rotina, como também vivo constantemente recriando novas concepções e novas experiências. Não só compartilho cotidianamente sentimentos e discursos considerados reconhecíveis pelo social, como também me deparo com as contradições por eu sempre mudar meu olhar ao viver em meio a várias formas discursivas na sociedade.
Não posso não comentar o seu texto. Um texto muito lúcido quanto aos postulados socio-linguísticos. Parecia que eu estava lendo bakthin. É isso meu caro, o transito é melhor que a classificações e universalições bobas. A vida nos surprende todos os dias nas praças, ruas e ruelas, ou shoppings etc. O obvio pode esconder tanta sabedoria quanto um axioma filosofico. basta o olhar está atento. lindo texto, um cheiro! Continuemos a trocar fichinha.
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