OLHOS DEVEM SER LIDOS SEM ÓCULOS...
Era uma sexta-feira chuvosa pela manhã. Um dia cinzento e úmido; de ruas e estradas alagadas; de pessoas trajando roupas mais pesadas. Tobias Barreto é uma cidade do centro sul do Estado de Sergipe. Seu frio é conhecido no Brasil, pelo menos, como dizem, saiu na televisão. O mês de agosto, o mês da festa da Padroeira, é o mais frio do ano. Berto, um tobiense nascido e criado no Jabeberi caminhava para seu trabalho. Como sempre, o rapaz de cabeça baixa caminhava tranqüilo para a Rodoviária. Na altura do Posto de Saúde na Rua do Fórum ele vê na calçada uma bola azul de borracha. O rapaz viu a bola rolar a sua frente como que empurrada por alguém. Ele olha para todos os lados e nada ver. De repente, a bola rola para dentro de uma casa. Berto acha aquilo esquisito e sai em busca da bola. Contudo a casa estava selada. Janelas e portas fechadas com blocos e massa. “Como?” Berto sem perceber toca a parede da casa e esta o puxa para dentro.
“Não acredito. Estou dentro da casa!” A bolinha havia sumido. Os móveis da casa eram uma televisão colorida, sofá, uma mesa de centro. Nos quartos havia camas e guarda-roupas. A cozinha, um pouco apertada, tinha fogão, geladeira, e uma mesa com quatro cadeiras; o armário era de parede. Era uma casa de gente pobre, mas, não tão pobre. O que chamou logo a atenção de Berto foi um abajur no pequeno corredor entre os quartos e a cozinha. Ele piscava sem parar. “Como uma casa fechada há anos tem seus objetos ligados?” Pensou Berto inteligentemente. O rapaz decide andar pela casa. Ela não estava suja. Havia algumas roupas jogadas na cama. E dois copos sobre a mesa da cozinha. Parecia que a casa tinha movimento de gente.
O banheiro ficava nos fundos, era o último cômodo. Berto entrou nele. Havia um cheiro estranho que parecia éter de hospital. O espelho estava limpo. Berto olha nele e não ver seu rosto. Sua imagem não aparecia na lâmina de vidro. Ele tomou um susto. “O que é isso? Que casa estranha? Como entrei aqui?” A ausência de sua imagem no espelho lhe chocou e o medo tomou conta do moço. Ele olha novamente no espelho para se certificar que não estava louco. Agora aparecem dois olhos no espelho. Os olhos eram castanhos claros. Os olhos choravam. Essa visão fez o medo do rapaz aumentar mais. “Meu Deus? O que é isso?” “Será que estou dormindo; não acordei?” Por toda a casa Berto via olhos. Eram olhos de todas as formas. Definitivamente, a casa estava cheia de olhos.
- Psiu! Psiu! Berto! Uma voz calma e baixa chama o rapaz pelo nome.
- Sim! Respondeu o jovem tremendo de pavor.
- Em todos os lugares da terra tem olhos. Você não os vê, mas, eles estão lá.
- Como sabe disso? Quem é você?
- Eu sou apenas olhos.
- Como entrei nessa casa?
- Foram seus olhos. Você viu a bola, e olhando para ela entrou aqui.
- Disso eu sei. Mas, a parede da casa?
- É tudo uma ilusão de ótica.
- Não entendi! Disse os olhos retornando o silêncio. Berto pegou seu celular e ligou para um colega de trabalho. A ligação estava péssima, quase que ele não entende nada.
- Alô! É Berto, quero falar com Matias!
- Quem!
- Matias!
- Quem?
Por acaso Berto olha para o teto da casa. O forro era branco. Todos os olhos haviam se reunido lá, bem acima de sua cabeça.
- Vocês querem ver tudo. Tudo que vemos é uma visão que já foi vista em algum lugar.
- Como?
- Seus olhos não são apenas seus. Eles são os olhos do outro.
- Não entendi!
- Deixa para lá!
- Deixa para lá não! Quero entender!
- Pois bem. Os olhos juntos formam uma teia de olhos que se olham o tempo inteiro. Por isso os olhares do mundo são os nossos e os dos outros. Existe uma possibilidade infinita de olhares por esta causa. Então seja prudente! O eu-tu é um olhar constante, pulsante e vivo.
Berto ouvia e via os olhos. Ao mesmo tempo ele escutava vozes no interior de sua mente. Era um sussurro, os olhos sussurravam uns com os outros; o rapaz pôs as mãos nos ouvidos, o som era insuportável. Berto caiu no chão da sala e tinha convulsões. Ele sentia dores profundas. Berto desmaiou... Entrando em estado de sono, ele se via em um bosque e nele estava uma mulher vestida de azul claro. Era um vestido longo e bonito. Sua beleza só perdia para a da mulher. Sobre a cabeça da linda moça havia uma coroa de flores coloridas. Berto olhou direto em seus olhos, calmos e serenos, porém penetrantes por sua irradiação. A mulher congela formando uma estátua de gelo ante o olhar do jovem tobiense. À proporção que Berto se aproxima da estátua, correm dela gotas de água. Berto pensa: “Que mulher linda!” “Essa pele branca combina com esses lábios carnudos e vermelhos”. “O seu corpo parece o de uma deusa grega”. A atração era irresistível; Berto acaricia os seios da mulher de pedra, toca-lhe o ventre, beija-lhe a boca. “Perdoe-me mãe!” Acordou o jovem tobiense com essas palavras na cabeça.
- Psiu! Psiu!
- Sim!
- Os olhos de dentro usam óculos escuros.
- Como assim?
- Olhar para dentro é mais complicado.
-Sei! Deve ser.
A casa parecia ter vida própria. Os móveis se mudavam de lugar a cada duas horas. Quanto mais Berto permanecia preso a casa, mais ele ficava nervoso. Ele decide bater na porta, mas, não obteve sucesso. As pessoas da rua não o escutavam. O silêncio e a inércia chegaram a casa. Os olhos haviam se fechado para dormir. Surgiu, então, um ronco na casa. Em todos os cômodos havia um barulho de ronco humano. Berto vai até o quintal, pois, o ronco era muito desagradável.
- Ei! Ei!
- Quem é?
- Sou eu. Eram os olhos do sono. Você pode me chamar de Oniriudo. Eu vejo quando os olhos dormem.
- Como assim? Oniriudo tirou os óculos que usava e os deu a Berto. Berto os pôs nos seus olhos. Para sua surpresa ela via pessoas por toda a casa. A casa tinha sua população de seres humanos. Um casal andava da cozinha para o quarto. Quando o homem ia para o quarto, a mulher estava na cozinha. Eles estavam em direções opostas o tempo inteiro. Os dois falavam cada um a seu modo, mas, diziam as mesmas coisas. As crianças estavam na sala vendo TV. A menina atendia pelo nome de Janet. O pequenino, no sofá, chamava-se Heleno.
- Meu bem está na sua cara!
- É loucura sua Carla! O que seus olhos viram foi um acidente. Nem tudo que se ver é verdade.
- Mas eu vi você com ela! Vocês estavam se beijando. Você dizia para ela que a amava.
- Mulher não foi como você viu! Vá tomar seu remédio. Espero-te na cama.
O casal repetia as mesmas coisas no seu ir e vir pela casa. O marido de Carla chamava-se Ronaldo. Enquanto ela foi para a cozinha ele se deita na cama. Alguns minutos depois Ronaldo se vira sobre seu ombro direito e entra em sono profundo. Seu ronco irritava Carla que tentava refletir sobre o ocorrido bebendo água na cozinha. Inquieta, a moça se levanta e torna a andar pela casa. As crianças também pegaram no sono. A televisão falava sozinha.
“Hoje as pessoas pagarão mais de imposto sobre as operações bancárias”.
“O sindicato dos metalúrgicos pensa em paralisação geral”.
“Morre de acidente o empresário Frederico”.
“Se beber, não dirija!”
A televisão ficou acesa na sala. Carla leva as crianças para o quarto. Cada uma em sua cama. Depois torna a repetir todo o percurso que fazia antes. Os óculos deram a Berto o poder de ver no escuro. A chaleira que estava no fogo apita quebrando o silêncio da casa. A água estava quente, fervendo. Uma senhora negra, gorda e baixa, se aproxima de Carla que estava em pé no corredor pensando no que ia fazer. A mulher estranha tira seus olhos e os põe sobre a mesa.
- Mulher! Vagabundo merece morrer! Ele traiu você friamente e ainda deixou fragrante. Vacilão! Os olhos de mulher traída são olhos de morte. Sem brilho. A vida acabou para você. Agora quando olhares um homem, você lembrará que todos são iguais.
- Mas, não é assim. Existem diferentes olhares. Então deve haver diferentes homens.
- Aquele deitado, roncando, é um mau homem, não é?
- Sim!
Carla pega a chaleira com certa dificuldade, pois, estava muito quente. Caminha cuidadosamente até o quarto, e joga seu conteúdo no ouvido esquerdo de seu marido. Este se retorce em agonia sobre a cama. Carla corre pega uma faca e crava a mesma duas vezes no peito dele. O sangue esguichava da artéria ferida com muita velocidade. O rapaz morreu em segundos. A menina de Tobias Barreto sai do quarto e segue em direção ao quarto dos filhos. Abraça-os, chora, e em seguida sufoca-os com um travesseiro. A casa estava em silêncio profundo. Somente o barulho bem distante de um olho que chorava quebrava o silêncio sepulcral daquele momento.
Os olhos se abriram. A negra gorda pega os seus olhos de cima da mesa e desaparece no quintal, sua risada é ouvida com muita clareza. Havia agora um som de gente falando e pessoas protestando.
Os olhos asiáticos disseram: Criminosa! A família é tudo! Os olhos pretos disseram: Cretina, como você se vinga nos filhos? Os olhos vermelhos disseram: “Vacilona, matou seu povo, agora, vai puxar cadeia. Valeu coroa!” Mas os olhos roxos insistiam na idéia de suicídio: “Se mate cara! Vai ser emocionante!”
Ronaldo havia comprado uma corda. Ele precisou amarrar alguns sacos de pano para levar para a feira da coruja. Carla pega a corda, se trepa em uma cadeira e dela pula. Seu corpo tremeu um pouco antes de morrer. Foi tudo muito rápido.
- Berto tire os óculos! Berto! Tire-os, rapaz!
Em prantos Berto tira os óculos. Alguns olhos amigos o consolava dizendo:
- Meu caro Berto, o mundo está todo assim.
- Discordo de você, meu caro olho gordo! Existem pessoas boas no mundo! Os olhos, que usavam um monóculo do lado direito interrompem a conversa.
- A natureza humana é violência também. Não se enganem com isso. Não julgo a mulher, mas, chamo a atenção de vossos olhos para que vejam que a violência está em nosso cotidiano. Infelizmente, presente também nas relações familiares.
- Eu acredito no bem! Disse Berto gritando.
- Você não tem olhos para ver sua violência verbal!
- Não, não, não eu quero sair daqui!
- Onde você está? Que dia é hoje? Afinal, o que você faz aqui?
- Eu caminhava para o trabalho e vi uma bolinha azul tentei pegá-la, e entrei aqui, sei lá como!
- A tua curiosidade de trouxe ao mundo dos olhos.
- Não, decididamente, não!
- Durma Berto, durma!
Berto acordou na calçada cercado de pessoas que o viram cair. “Ele ia andando e pufo caiu!” “Ele parecia bêbado e caiu”. “Ele falava sozinho e se abaixou e caiu”. Alguns diziam: “É louco!” Outros diziam: Coitado! Berto se levanta, percebe que está bem, e segue seu destino até a Rodoviária. As pessoas ficaram falando até não verem mais possibilidades. E Berto nunca entendeu o que realmente houve naquela manhã de sexta-feira chuvosa. E a casa continuou fechada. As pessoas nunca souberam ao certo o porquê que ninguém reclama sua propriedade. E ninguém deseja comprá-la...
Para mim este foi o conto do ano do sr. Roosevelt leite. Olhos nos diz das coisas que não freqüentemente dizemos aos outros. Tem uma narrativa sensacional, e uma trama de suspense do comerço ao fim. Parabéns!
ResponderExcluirO começo nos dá a idéia de algo interessante, mas, Roosevelt, faltou a continuação. Belo trabalho!....?
ResponderExcluirMeus caros anônimos,
ResponderExcluirMinha intenção foi essa: Provocar diferentes olhares... Só depende de seus olhos.
Roosevelt
ResponderExcluirVivemos em meio a um excesso de olhos por toda a parte. Cada olho repercute em algum sentimento nosso diante da vida. Existem olhos de culpa de inveja, de desejo, de surpresa, de tristeza, de criações paranóicas, etc etc. A forma como escolhemos cada olho pelo espaço, encontra-se diretamente associado a forma como nós optamos em nos convencer acerca de alguma ação alheia ou nossa. No final das contas, o conto mostra diversas formas de olhos, sejam eles pretos, vermelhos, e cada olho traduz o comportamento da mulher de uma forma diferenciada. Verdades? Certezas? Ninguém sabe. Berto simplesmente se levantou e seguiu seu rumo enquanto a casa se mantece no mesmo lugar. Hummm... será mesmo? Enfim, tudo é uma questão de olhos né kkkkkkk
Muito bom o texto meu caro
abração
Primoroso! Acho que cabe mais estoria aí mesmo, mas a construção que foi feita já consideravelmente lirica e possui reflexões muito pertinentes. Parabéns painho!
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