terça-feira, 3 de maio de 2011

Espaço e tempo ou corpo e espírito

Sim, foi o passado, e se tudo foi se perdendo e se refazendo é para deixar que ele fosse oculto e não desaparecesse, por isso tem que renascer em outras palavras. É com pesar que hoje a essa cidade retorno, parecendo que o destino aveludou as lembranças que eu tinha daqui, mas agora que estou perto Mariana, a casa que aqui ao lado nós estamos é ruína. O que foi demolido foi o sentido, mas a casa, para mim hoje não é nada, nem a cidade, nem o resto, não são mais o que eu sou. Fingir que ela não existia foi esse adiamento da dor, agora que estou aqui, a casa que eu queria que estivesse oculta e a casa presente se fizeram uma. Em minhas memórias recrutava meus amigos para jogar contigo, recrutava a chuva que misturada com a areia cheirava forte, e essa poética era minha liberta prisão. E considero agora que devo parar de saudar essa dita saudade, o menino está pronto para ganhar o diploma, perto e no peito variadas sensações de fazer fazer.

Mariana era minha doce companheira, se espantava com os passos desse velho que sou. O bocado de traças, um bocado de Brasil, uma coisa que ela mesma se perguntava se existia, um homem que parava o tempo em sua morada, fazia que as árvores ganhassem tentáculos e fala. Ela sempre teve medo de mim, mas com o tempo foi percebendo a intersecção entre os nossos espíritos, algo demasiado humano. Ele era de Oxossi ela era de Oxum, talvez por isso tínhamos similitudes que desafiava os séculos. Em nossa juventude éramos pessoas que as esperanças tinham dó, possibilidades irrisórias para configurar uma possível união. Hoje temos uma relação, e deixo que a palavra tome a incumbência de traduzir nossa vida, é isso que mantemos, uma relação.

Estou aqui para me fazer bem a ela, para tratar da minha luta intraduzível. Por isso digo a ti, tomei coragem pra vir porque foi tudo reescrito por causa do samba, que me fez ver a dor sem espanto, e por melodia, assim, tratando o medo com ternura. E para chegar a entender o que me triturava é que um belo dia, ela em um gesto despercebido de sua profundidade, me disse para descer para estrada, a cidade onde dizia que pescava os peixes fora da rede.

Vim então parar aqui, e o que eu esperava eu encontrei, aquela rua onde passava eufórico, para jogar meus barquinhos de palito de pirulito nos córregos, que mesmo chovendo corríamos até o fim da rua para vê-lo navegar, a pipa, a menina do começo da rua, lembrei dos esconderijos regados a beijinhos tímidos. Foi daí que fiz gelidamente o crime que tinha que ser cometido, matei a criança que via, degolei-a em euforia, até me ver caído na rua, com o sol em minha cara e Mariana congelada no tempo. Nesse momento, levantei do meu corpo, vi Mariana congelada, vi também tudo em minha volta se fazer de uma forma diferente, psicodelicamente as cores foram se modificando, tudo ganhou um tom peculiar as minhas fantasias, e eram dois, o espírito e o corpo físico, agora estavam em conflito, assim como dá vez que o espírito deixou de habitar o corpo de menino. Num segundo momento, vi meu espírito se duplicar, agora ele era fantasmagoricamente eu e eu menino, comecei a dialogar com essa sombra. – Menino por que deixamos a carcaça antiga e mesmo assim me manobra feito uma marionete? A falta de sincronia me deixa achar que em outro corpo habito.

O eu menino parou e não falou nada a respeito das minhas indagações, olhava pra mim como se não entendesse nada do que estava falando. Em um certo momento quando já estava por demais espantado com tudo isso, o menino virou o rosto, e levemente o corpo dele se deslocou para um canto da rua onde estava minha casa, e surpreendentemente, vi a árvore que ficava no fundo de minha casa, era uma goiabeira. O menino falou pra mim – Desça da árvore, está na hora, dessa da árvore, alguém te chama na porta!

Voltei a mim, estava cansado, parecia que havia deixado séculos em débito. Beijei Mariana e retornamos a Aracaju. Fiz um chá, olhei bem fundo em seus olhos e transamos como nos tempos de juventude. Após os deleites disse: Laroiê Bara! É o tempo e a carne, na sombra do tempo há arte, é descaminho o caminho que acerta o giro. É minha carne alimento, é o que a terra pede ansiosa, alimentemo-nos. Salve a terra, salve o tempo. Estou amanhecendo, e qual motivação teve o tempo em minhas marcas não sei, mas salve o tempo, salve a terra, deu seu giro tardio.

Um comentário:

  1. Que texto delicioso de se ler. Recheado de memórias, de imagens, de ternura e de gosto da vida.

    Parabéns!!

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