Especificamente no século 19, recrudescendo os ataques que alguns filósofos vinham desferindo à religião enquanto unidade de conhecimento e horizonte de vida, a filosofia genealógica de Nietzsche, seguindo um caminho similar, acrescenta àqueles alguns elementos inovadores e talvez mais letais, elencando como principal propósito a derrubada de ídolos.
Ao identificar a moral como um problema e tudo o que se escreveu em termos de filosofia como exemplo caricato da negação da vida, o filósofo tenta contornar tal forma merencória e pudica de pensar o mundo destacando que ela, enquanto terreno onde tudo é medido segundo a sua essência e o seu valor moral, é, entre outras coisas, também uma espécie de disfunção fisiológica cujos fins são, quase sempre, a negação do sujeito como repositório de instintos. Ora, no capítulo dedicado a Sócrates presente em O Crepúsculo dos ídolos, trazendo a punho o seu martelo, a ironia levado a cabo por Nietzsche contra o precursor de Platão é certeira, e o atinge talvez no seu momento mais áureo: quando de sua morte, Sócrates, tornando-se cônscio da dívida que tinha para com Asclépio, denuncia-se grato pelo prazer decorrente dea morte próxima, enxergando o fim como o oásis no qual a sua alma pura e inteligente passará a descansar dos desassossegos da vida terrena. O dialético e melhorador do mundo então fenecem, reservando à posteridade o que escondia em si de mais íntimo: ser ele, nas palavras de Nietzsche, um decadente.
Quando vislumbra no cristianismo os traços de um “platonismo para o povo”, é evidente que o pensador alemão alcança nessa religião fundamentos próximos aos da linha socrática de pensamento, um emparelhamento que torna ambos epistemologicamente simétricos, urgindo pois que aí também sejam dadas marteladas. E não fica por menos: apontando para a estratégia cristã de deslocar o homem de sua existência concreta e de tudo aquilo que a circunda, Nietzsche identifica no cristianismo como que o germe de uma doença que, ao afetar o indivíduo, condiciona-o a não mais enxergar valor nas coisas de baixo, tapando-lhe os poros para as sensações terrenas, porque elas, além de fugazes e sem sentido, também são imperfeitas.
A alternativa que lança a essa avaliação, é válido que se diga, deriva de sua própria experiência como enfermo: na ausência de meios que o curem da letargia que lhe assegurava severos transtornos, passa a amar sua doença incontornável. Ora, usando as palavras de Sartre ao se referir à feiúra de que era dono, em Nietzsche, a contragosto de qualquer pretensão que pudesse ter acerca de si mesmo enquanto projeto a ser completado mediante a presença do futuro, a barbaridade do destino parece ter realizado o próprio sentido da vida, dado que esta, sendo mediada pela contingência e pelo devir ininterrupto, assalta-nos à consciência, depois de testada e madura, com igual ou maior tragicidade, fato para o qual as religiões tornam-nos quase cegos. E é aí onde tem gênese a filosofia afirmativa de Nietzsche: descartada a má-fe de não se apreender a vida em sua face ontológica, abre-se mão de delegá-la a um deus limitado ao espaço da especulação e da possibilidade, tornando-se para o indivíduo, em sua integralidade mesmo, responsabilidade, fardo... – trabalho de Sísifo!
Não é do meu conhecimento que o filósofo alemão tenha analisado a fenomelogia religiosa do homem em toda a sua amplitude. Isso, é claro, não lhe tira o mérito de sua obra da qual não discordo em sua inteireza. E acredito que nenhum estudioso da religião faria. Contudo, uma religião seja ela qual for é sobre tudo uma produtora de sentidos os quais são do interesse não apenas da folosia, mas, também de vários outros seguimentos do saber humano. Aconselho, o colega torto a estudar um pouco mais este fenômeno sobre o qual o filosofo alemão não conseguiu uma abstração mais ampliada. Talvez a sociologia, ou a sociolinguistica possa te oferecer melhores informações. Sua análise, a meu ver é muito reducionista e traz, como sempre, uma amargura que afasta as pessoas de sua análise. Seja impessoal, o mais que puder ser, quem sabe, fazendo assim, a claridade sobre esse fenômeno apareça e te mostre que como tudo ao seu redor a religião é sobre tudo uma produção humana e como tal é objeto de muitas especulações.
ResponderExcluirRoosevelt, esse texto é, na verdade, a transcrição de uma prova sobre Nietzsche que fiz na semana passada. Portanto, é mais um registro imparcial acerca do pensamento do filósofo alemão do que uma inclinação pessoal minha.
ResponderExcluirO reducionismo, pelo que vejo, não está concentrado na minha análise, mas no juízo infundado que você erigiu sobre a minha pessoa e na falta de conhecimento a respeito de Nietzsche que a sua própria resposta denuncia.
Quanto ao fenômeno religioso, isso não é abordado por Nietzsche da mesma forma como o fez, em vários e vários tomos, Mircea Eliade, mais adiante, no século 20. É preciso se atentar ao que destaquei logo no início da reflexão, ao dizer que ele, apesar de incrementar os ataques que vinham sendo desferido à religião de formas diversas por filósofos como Stirner e Feuerbach, foi talvez mais inovador e letal, porque a toma do ponto de vista ideológico - isto é, como produtora de valores morais, tais quais o pobrismo, a negação do corpo como repositório de instintos, a fraqueza, o essencialismo etc.
Apesar disso, não estou em acordo totalmente com Nietzsche, posto que ele, ao atacar o cristianismo alegando que o único cristão morreu na cruz, chama atenção para aspectos que, por exemplo, a teologia da libertação buscou regenerar: o cristão como ser que faz com suas ações justiça ao evangelho, a pregação de valores altruísticos, a opção preferencial pelos pobres e oprimidos e assim por diante.
Eu, enquanto homem de fé duvidosa e marxista, simpatizo muito com esse cristianismo propalado pela teologia da libertação. Agora, enquanto homem racional, não olvido a pontualidade de vários termos da filosofia nietzscheana.
Enfim, é isso.
Gosto muito da teologia da libertação, principalmente pela forma como ela é abordada por Leonardo Boff. Gosto de pensar a religião não apenas com a misera função de alimentar o espírito como querem insistir os padrecos e podrestores ridiculos sedendos pela perpetuação da ordem acomodada e covarde. Gosto de pensar a religião não só como forma de alimentar o espírito, mas uma religião que alimenta esse espírito justamente por ser ativa, voltar sua ação para olhar a vida enquanto processo histórico, olhando o fiél enquanto agente ativo da história, responsavel pela alteração de uma estrutura, de uma realidade. Um religioso que saiba se confrontar, saiba se misturar as suas contradições e a partir delas, saiba reorganizar seus valores e sua moral. Um religioso apto em requestionar o poder e capaz de se dialogar de forma consciente, fazendo da religião e de deus não apenas elementos servientes ao controle social, e sim, como condiçõs propicias para a possibilidade de emancipação de cada um de nós.
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