quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Nietzsche

Especificamente no século 19, recrudescendo os ataques que alguns filósofos vinham desferindo à religião enquanto unidade de conhecimento e horizonte de vida, a filosofia genealógica de Nietzsche, seguindo um caminho similar, acrescenta àqueles alguns elementos inovadores e talvez mais letais, elencando como principal propósito a derrubada de ídolos.

Ao identificar a moral como um problema e tudo o que se escreveu em termos de filosofia como exemplo caricato da negação da vida, o filósofo tenta contornar tal forma merencória e pudica de pensar o mundo destacando que ela, enquanto terreno onde tudo é medido segundo a sua essência e o seu valor moral, é, entre outras coisas, também uma espécie de disfunção fisiológica cujos fins são, quase sempre, a negação do sujeito como repositório de instintos. Ora, no capítulo dedicado a Sócrates presente em O Crepúsculo dos ídolos, trazendo a punho o seu martelo, a ironia levado a cabo por Nietzsche contra o precursor de Platão é certeira, e o atinge talvez no seu momento mais áureo: quando de sua morte, Sócrates, tornando-se cônscio da dívida que tinha para com Asclépio, denuncia-se grato pelo prazer decorrente dea morte próxima, enxergando o fim como o oásis no qual a sua alma pura e inteligente passará a descansar dos desassossegos da vida terrena. O dialético e melhorador do mundo então fenecem, reservando à posteridade o que escondia em si de mais íntimo: ser ele, nas palavras de Nietzsche, um decadente.

Quando vislumbra no cristianismo os traços de um “platonismo para o povo”, é evidente que o pensador alemão alcança nessa religião fundamentos próximos aos da linha socrática de pensamento, um emparelhamento que torna ambos epistemologicamente simétricos, urgindo pois que aí também sejam dadas marteladas. E não fica por menos: apontando para a estratégia cristã de deslocar o homem de sua existência concreta e de tudo aquilo que a circunda, Nietzsche identifica no cristianismo como que o germe de uma doença que, ao afetar o indivíduo, condiciona-o a não mais enxergar valor nas coisas de baixo, tapando-lhe os poros para as sensações terrenas, porque elas, além de fugazes e sem sentido, também são imperfeitas.

A alternativa que lança a essa avaliação, é válido que se diga, deriva de sua própria experiência como enfermo: na ausência de meios que o curem da letargia que lhe assegurava severos transtornos, passa a amar sua doença incontornável. Ora, usando as palavras de Sartre ao se referir à feiúra de que era dono, em Nietzsche, a contragosto de qualquer pretensão que pudesse ter acerca de si mesmo enquanto projeto a ser completado mediante a presença do futuro, a barbaridade do destino parece ter realizado o próprio sentido da vida, dado que esta, sendo mediada pela contingência e pelo devir ininterrupto, assalta-nos à consciência, depois de testada e madura, com igual ou maior tragicidade, fato para o qual as religiões tornam-nos quase cegos. E é aí onde tem gênese a filosofia afirmativa de Nietzsche: descartada a má-fe de não se apreender a vida em sua face ontológica, abre-se mão de delegá-la a um deus limitado ao espaço da especulação e da possibilidade, tornando-se para o indivíduo, em sua integralidade mesmo, responsabilidade, fardo... – trabalho de Sísifo!

3 comentários:

  1. Não é do meu conhecimento que o filósofo alemão tenha analisado a fenomelogia religiosa do homem em toda a sua amplitude. Isso, é claro, não lhe tira o mérito de sua obra da qual não discordo em sua inteireza. E acredito que nenhum estudioso da religião faria. Contudo, uma religião seja ela qual for é sobre tudo uma produtora de sentidos os quais são do interesse não apenas da folosia, mas, também de vários outros seguimentos do saber humano. Aconselho, o colega torto a estudar um pouco mais este fenômeno sobre o qual o filosofo alemão não conseguiu uma abstração mais ampliada. Talvez a sociologia, ou a sociolinguistica possa te oferecer melhores informações. Sua análise, a meu ver é muito reducionista e traz, como sempre, uma amargura que afasta as pessoas de sua análise. Seja impessoal, o mais que puder ser, quem sabe, fazendo assim, a claridade sobre esse fenômeno apareça e te mostre que como tudo ao seu redor a religião é sobre tudo uma produção humana e como tal é objeto de muitas especulações.

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  2. Roosevelt, esse texto é, na verdade, a transcrição de uma prova sobre Nietzsche que fiz na semana passada. Portanto, é mais um registro imparcial acerca do pensamento do filósofo alemão do que uma inclinação pessoal minha.

    O reducionismo, pelo que vejo, não está concentrado na minha análise, mas no juízo infundado que você erigiu sobre a minha pessoa e na falta de conhecimento a respeito de Nietzsche que a sua própria resposta denuncia.

    Quanto ao fenômeno religioso, isso não é abordado por Nietzsche da mesma forma como o fez, em vários e vários tomos, Mircea Eliade, mais adiante, no século 20. É preciso se atentar ao que destaquei logo no início da reflexão, ao dizer que ele, apesar de incrementar os ataques que vinham sendo desferido à religião de formas diversas por filósofos como Stirner e Feuerbach, foi talvez mais inovador e letal, porque a toma do ponto de vista ideológico - isto é, como produtora de valores morais, tais quais o pobrismo, a negação do corpo como repositório de instintos, a fraqueza, o essencialismo etc.

    Apesar disso, não estou em acordo totalmente com Nietzsche, posto que ele, ao atacar o cristianismo alegando que o único cristão morreu na cruz, chama atenção para aspectos que, por exemplo, a teologia da libertação buscou regenerar: o cristão como ser que faz com suas ações justiça ao evangelho, a pregação de valores altruísticos, a opção preferencial pelos pobres e oprimidos e assim por diante.

    Eu, enquanto homem de fé duvidosa e marxista, simpatizo muito com esse cristianismo propalado pela teologia da libertação. Agora, enquanto homem racional, não olvido a pontualidade de vários termos da filosofia nietzscheana.

    Enfim, é isso.

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  3. Gosto muito da teologia da libertação, principalmente pela forma como ela é abordada por Leonardo Boff. Gosto de pensar a religião não apenas com a misera função de alimentar o espírito como querem insistir os padrecos e podrestores ridiculos sedendos pela perpetuação da ordem acomodada e covarde. Gosto de pensar a religião não só como forma de alimentar o espírito, mas uma religião que alimenta esse espírito justamente por ser ativa, voltar sua ação para olhar a vida enquanto processo histórico, olhando o fiél enquanto agente ativo da história, responsavel pela alteração de uma estrutura, de uma realidade. Um religioso que saiba se confrontar, saiba se misturar as suas contradições e a partir delas, saiba reorganizar seus valores e sua moral. Um religioso apto em requestionar o poder e capaz de se dialogar de forma consciente, fazendo da religião e de deus não apenas elementos servientes ao controle social, e sim, como condiçõs propicias para a possibilidade de emancipação de cada um de nós.

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