Ao meu antigo vizinho Paulinho, morto no ano passado
Eu corria pleno pela estrada de chão, carregando os pés de barro alaranjado, sem fazer caso dos cipós e do cansanção que me desfiguravam as canelas delgadas. O mundo que conhecia ganhava brilho à luz prata da lua enorme e o seu cheiro era o do mato virgem em que os grilos e as cigarras se escondiam para cantar. Se bem me lembro, não pensava em Deus nem era forçado a rezar o Padre-Nosso à noite, em menção da ceia mal repartida e do pai descuidado que foi embora. Os ruídos altissonantes da televisão Sharp de umas poucas polegadas corroíam o silêncio absoluto das 20:00 horas e, para evitar as indesejáveis muriçocas e os pernilongos, assistíamos àqueles chuviscos de dentro do mosquiteiro azulado e grande, protegidos do frio interiorano sob cobertas muito algodoadas e grossas. O céu estrelado se mostrava através dos buracos de ventilação abertos na parede do quarto, fazendo florescer em mim reminiscências infantes sobre a distância, as quais crispavam o meu coração carente. Por vezes uma cobra ou um escorpião apareciam famintos à entrada da porta e a minha mãe, mesmo que com medo, ia até eles e os matava com golpes fortes de vassoura. Via a tudo temeroso e inócuo, recolhido sob os lençóis a um canto seguro da cama, com os meus quatro ou cinco anos insignificantes de vida mostrando-me, já ali, em qu’eu sucederia: um covarde.
João
ResponderExcluirAdorei a descrição que você foi trazendo ao longo do texto. Ilustrou tão bem o ambiente que eu me senti no lugar. Nota-se que essa descrição veio do fundo da alma e foi sendo levada com a mais sincera lembrança.
Sem dúvida, Vina. Valeu pelo comentário.
ResponderExcluir