sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Anoitece no Marivan

                      Ao meu antigo vizinho Paulinho, morto no ano passado

Eu corria pleno pela estrada de chão, carregando os pés de barro alaranjado, sem fazer caso dos cipós e do cansanção que me desfiguravam as canelas delgadas. O mundo que conhecia ganhava brilho à luz prata da lua enorme e o seu cheiro era o do mato virgem em que os grilos e as cigarras se escondiam para cantar. Se bem me lembro, não pensava em Deus nem era forçado a rezar o Padre-Nosso à noite, em menção da ceia mal repartida e do pai descuidado que foi embora. Os ruídos altissonantes da televisão Sharp de umas poucas polegadas corroíam o silêncio absoluto das 20:00 horas e, para evitar as indesejáveis muriçocas e os pernilongos, assistíamos àqueles chuviscos de dentro do mosquiteiro azulado e grande, protegidos do frio interiorano sob cobertas muito algodoadas e grossas. O céu estrelado se mostrava através dos buracos de ventilação abertos na parede do quarto, fazendo florescer em mim reminiscências infantes sobre a distância, as quais crispavam o meu coração carente. Por vezes uma cobra ou um escorpião apareciam famintos à entrada da porta e a minha mãe, mesmo que com medo, ia até eles e os matava com golpes fortes de vassoura. Via a tudo temeroso e inócuo, recolhido sob os lençóis a um canto seguro da cama, com os meus quatro ou cinco anos insignificantes de vida mostrando-me, já ali, em qu’eu sucederia: um covarde.

2 comentários:

  1. João

    Adorei a descrição que você foi trazendo ao longo do texto. Ilustrou tão bem o ambiente que eu me senti no lugar. Nota-se que essa descrição veio do fundo da alma e foi sendo levada com a mais sincera lembrança.

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  2. Sem dúvida, Vina. Valeu pelo comentário.

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