domingo, 21 de dezembro de 2014

Querido Leonardo

Querido Leonardo,

A verdade é fruto das dúvidas. Se a verdade é resultante delas, é por isso mesmo que, mesmo conseguindo encontrar argumentos aparentemente sólidos e lógicos, essa verdade "descoberta" se dissolve em novas dúvidas. A vida não existe por ser vida. A vida pensa em buscar existir para tentar a qualquer custo achar algum sinônimo longínquo que exprima de uma vez por todas o que é viver. Viver é prática de espantos diante da nossa existência de cada dia. Somos um universo estranho a nós mesmos maquiado de nuvens.

Triste daquele a quem devota a verdade e a coloca em um patamar inquestionável. Triste daquele que a tem como resultado irreversível diante das sedentas variáveis que reinam em nossa cabeça-astronauta. Coitados daqueles que definem o amor enquanto um Ideal de vida e que se desmoronam por entre remédios psiquiátricos por qualquer obstáculo que passa despercebido em suas vidas. Quem clama que o amor é a Verdade, na certa será incapaz de amar a quem diz que ama, caso um dia se acabe esse amor. Amar, assim como as mágicas que permeiam nosso mundo, nosso existir, é um buscar-ser-alguma-coisa. Amar é sentir prazer e gozar pela lacuna que preenche o coração despovoado e desajustado de tantos sentidos semeados pela razão.

Somos um acúmulo de fantasmas que se manifestam em nossas escolhas, isto é, em nossos objetos eleitos por nós. Somos apenas um descanso em meio a um intervalo atemporal de suspiros. Escolhemos gestos, afetos, ódios. Apenas os escolhemos, pois cada um deles responde a uma de nossas infinitas inquietudes que carregamos dentro da alma. Eu não posso ser nada a não ser sonho. Se bem que eu sequer posso ser sonho, afinal, o sonho é uma nomeação que faço daquilo que quero responder o que é, mas... o que é não é o que tenho! O que é, significa a carência de significados, sendo apenas um mísero gesto de tentativas de buscar ser o que não se tem por certo. Atrás de mim, dentro de mim, fora de mim, à minha frente, só recorro a caminhos que talvez me prometam a paz que quero, mas que não tenho.

A sociedade anda atormentada por no fundo reconhecer que os códigos que a orienta e a direciona em sua existência não passam de probabilidades reticentes do que pensamos ter. A sociedade anda cuspindo no vácuo, sem querer reconhecer que possui o vácuo. Não quer reconhecer que a própria cultura é resultado do vácuo que busca a todo tempo se preencher em uma realidade na qual o preenchimento não passa de buscas vãs de mais e mais palavras. A sociedade está apodrecendo por querer ser eternamente viva. Mas de que vale essa vida feita de desenhos projetados, mas incapazes de se ajustarem ao tremor dos ecos do pensamento e das mãos rabiscadas que traçam desnorteadamente essas linhas tortas? Querer unicamente a forma é morrer enquanto processualidade. O vir a ser, esse sim, é o encantamento mais fecundo do humano justamente por desencantá-lo da terrível covardia de acreditar estar sempre no aconchego do alvo certo. Estamos em uma sociedade que teme a morte, mas que está enterrada em seu caixão chamado vida. As aventuras e os riscos são negados por provocarem turbulências na alma, ou seja, por encontrarem com a alma, que, apesar de aparentemente escondida no depósito das nossas falcatruas, revela-se constantemente em todo e qualquer ato que exercemos e executamos diante do outro e do mundo que nos rodeia.

A arte está marginalizada enquanto catarse, pois estamos em um mundo atolado de agendas e compromissos e incapaz de negociar seus afetos com um mercado de símbolos e inflações interplanetárias. A arte da potência-vida está se dissipando, pois estamos em meio a uma sociedade que teme a incerteza, afinal, é carregada de tanta informação! Deus não morreu, mas ficou brocha. O grito, o impulso, o atrevimento, a performatividade, a ganância em escavar a errância do universo foi deixada de lado. Até mesmo os ditos aptos a vivê-la como os filósofos e artistas, por exemplo, vivem a deixá-la em uma lata de lixo ou a empurra em qualquer arquivo morto para viverem o conforto seguro e infeliz das departamentalizações burocráticas das grades curriculares do sistema educacional.e profissional.

Não pretendo isso, não quero me lambuzar do veneno dessa alegria fajuta e inescrupulosamente procriada e reproduzida pela sociedade do consumo. Não pretendo me encaixar em modelos com regras engessadas e protecionistas para uma vida horrenda de carnavais falidos e adormecidos. Quero estar solto e cambaliante diante de uma aventura feita de incógnitas, afinal, sou humano, e por isso mesmo, carrego o segredo e o infinito. Quero me adentrar pra fora e me extrapolar pra dentro, angariar todas as lamas que me pertencem, jogá-las nos quadros rigidamente disciplinadores de uma sociedade que se enfeita de ordem e se detona em seu caos mal resolvido. Sou o caminho que me serve de passos, não de orientações que se finalizam em si mesmas. Quero brincar de errar e me estrepar de amor por justamente eu ter amor para dá, mas que esse amor seja eterno, assim como é a minha mísera provisoriedade infinita.

Quero adormecer em minha cama e me assustar por não ter chão. Quero me assustar por não ter nada e por isso mesmo agregar meus fantasmas à minha companhia. Quero contar os meus segredos para todos os meus olhos traidores, pois preciso aprender a chorar por mais que me doa, mas preciso chorar, do contrário, estarei inerte a uma vida cheia de magoas e frustrações. Que eu me traia a todo instante, que eu me encarregue de me colocar contra a parede para me socar e me dá baculejos. Ao me ver no espelho quero ser apenas retrato difuso, quero ser a ininteligibilidade que me aguarda e que me protege, pois sem ela não me vejo apto em sonhar, e, portanto, em exercer a única condição que talvez ainda me reste para essa grandiosa e dolorosa proposta que é existir.

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