segunda-feira, 17 de dezembro de 2012
MANDACARUS
O mandacaru é uma cacatácea muito comum no sertão nordestino. Em Sergipe ele aparece em quase todo o estado. Nossa caatinga é hipoxerófita, e isso faz com que as condições sejam favoráveis para o principado das cactáceas. Tanto nas regiões de aridez grande quanto nas de aridez mais branda, o mandacaru estará por lá. De vez em quando, um louco dessas terras ouve algum deles contar uma história...
- O professor Rozental tá indo para onde? Perguntou Felipe, um vendedor de vísceras de porco.
- Olá Felipe! Estou indo para o Povoado Jabiberi. Respondeu Rozental olhando para a telinha de seu celular.
- O professor tem um trocado aí? Pediu um dinheirinho o jovem evadido da escola aos 14 anos, hoje com 21, vende carne na feira e divide o lucro com o sócio, o tal Pedrinho da Barragem.
- Não Felipe. Não ando com dinheiro, o amigo sabe.
- Vá com Deus professor! Rozental subiu no ônibus amarelo e preto com o nome “escolar” escrito nos lados e na frente. O ônibus estava repleto de alunos e professores que iam para os povoados Batata, Agrovila, e o Jabiberi. O mestre de crianças se sentou do lado esquerdo do carro, o lado que dá para a serra na viagem de ida. A serra do Canine logo surgiu na paisagem daquele sertão. Rozental lembrou-se da revolta dos urubus e pensou seriamente em mudar seu modo de trabalhar. “Acho que a natureza exige uma nova relação com o homem”.
No mês de novembro as pedras do sertão gemem e lascam. O sol dialoga com elas e com toda a natureza desse bioma sertanejo. O mandacaru, herdeiro legítimo do trono da família nobre das cactáceas, não se curva perante o astro rei – ele é o verdadeiro coronel dessas terras secas.
Rozental se deleitava com a visão de seus olhos. Embora cinzento e seco, o sertão tem pontos verdes espalhados pelo pasto aqui e ali. São os joás ou juazeiros. Eles foram aliados políticos das cactáceas por muito tempo. Mas, depois que Belchior Dias Moreira dominou essas terras, tudo foi repartido e divido por cercas de arame farpado. A ditadura do arame continua até hoje e o conselho dos velhos de cãs e de experiência é: “Cada um dentro de seu cercado”.
- Rozental! Rozental! O professor não acorda e parece pálido! Falou um pouco alto o professor Cerqueira. O ônibus que estava se esvaziando defronte a escola do povoado Jabiberi se torna o centro dos olhares docentes e discentes naquela tarde. “O que houve com Rozental?” Alguns diziam uma coisa outros diziam outra e havia alguns que nada diziam apenas olhavam curiosos. Enquanto isso Rozental estava preso a sua visão:
Um mandacaru de sete metros, muito robusto, de braços fortes, na verdade ele tinha uns seis braços e alguns toquinhos ainda desabrochando, decidiu caminhar pelos pastos, e conversar com seus familiares. Rozental, em sua vidência via tudo e caminhava pelos campos cercados e pastos do Jabiberi. Os animais não lhe viam e nem as pessoas. Somente os mandacarus percebiam a presença do docente.
- Seu mandacaru!
- Sim!
- O senhor não me leve a mal, mas, o que está acontecendo?
- Dizem que Virgulino ressuscitou. As almas que ele prendeu nos mandacarus agora pedem justiça.
- Mas, assim, depois de tanto tempo?
- Quem te disse que a natureza esquece as ações dos homens? No tempo certo cada um pisará no seu espinho e sentirá sua dor. O espinho do mandacaru pode até matar, depende do lugar que ele perfure no corpo, por isso, Rozental se preocupou, pois, suas crianças lhe eram muito queridas.
- Onde está Virgulino?
- Ele chegou a Riachão, e amanhã estará no povoado Jabiberi. Com a resposta do ilustre mandacaru, Rozental se entristeceu e desceu até uma baixada onde havia um pequeno riacho, ali, ele pondera sobre os fatos.
“Esse sol quente; essa terra seca; deve ser tudo isso junto mais a idade. Acho que estou broco, será?” “Mandacaru falante, Lampião ressuscitado, meu Deus, o que não fazem as cãs!” “Afinal, por que tudo isso? Acho que preciso de médico urgente!”
- Rozental! Rozental!
- Quem é?
- Olhe aqui! Sou eu! O pedagogo olhou em todas as direções e nada viu. Rozental olhou para o riacho na direção da raiz de uma jurema. De fato, uma raiz de jurema rasgou a terra e deu n’água. Nela estava sentada uma moça que segurava uma vara de joá na mão direita.
- Ah, agora sim! Meu nome é Lizandra. Eh, como podes ver sou uma ondina.
- Pelo nome do Cristo vivo, o que é isso “ondina”?
- A natureza é regulada pelos espíritos encarnados nela as ondinas estão na água. Somos elementais hídricos.
- Olhe moça, eu não tenho tempo para mitos. Sou um homem racional. Diga-me o que desejas.
- Vossa razão é a causa de vossa dor. O alívio que dela advém não se compara a angústia que toda a terra sofre por causa de vossa lógica. A terra deve ter gelo, água, e fogo. A terra deve ter árvores e todos os bichos, pois tudo está em tudo, somos da mesma matéria, única, em todo o universo. As formas reclama justiça!
- Perdoe-me moça minha ignorância, mas, estou perdido, nem sei se estou aqui.
- Não há distancia entre a lógica e a imaginação; se o pensar é idealizar, isto é, por em forma de ideia as coisas da mente, então pensar é também sonhar. Quem sabe você acorde algum dia!
- O que queres dizer então dona sereia?
- Você deve comparecer a conferência dos mandacarus que ocorrerá perto da Lagoa Real, o último lugar pisado por Lampião nessas terras do Barão de Jeremoabo.
- Por que devo ir?
- Porque se sua pessoa não for, a coisa vai ficar pior porque a natureza está buscando o equilíbrio, e se ele não for feito, o povoado pagará a conta. “Devo estar com insolação; deve ser isso, logo vai passar”. Pensou o mestre do interior. A ondina se levantou da raiz e pegou uma cabaça para banhar-se nas águas. Quando água fria tocava em sua pele etérea, pequeninas gotas de água subiam à atmosfera e lá formaram um arco-íris muito bonito. Rozental meditou sobre o sentido daquele arco colorido.
Lampião chagou com seus homens no alto do povoado Saquinho em Tobias Barreto. Olhou os campos por onde passara algumas vezes. O cangaceiro sentiu o cheiro do beiju que uma índia Kariri fazia quando ele chegava a esses sertões.
- Umbuzeiro, vá ver a índia com os beijus!
- Sim senhor coronel! O homem montou um jegue chamado carinhosamente de “Aritana”. Os dois desceram a ladeira até a aldeia que ficava no pé da serra do Canine. A índia os espera com os surrões de beiju.
- Diga a seu Ferreira que num faça má não ao nosso povo!
- Que é isso bugre feme! Virgulino é boa gente. Poucos caíram por essas bandas. Por que ele fará má a seu povo?
- Nosso povo sabe da lenda dos mandacarus e parece que é agora ou nunca.
- O que sua índia? Que estória é essa?
- Pois, um mandacaru, agora, é o rei do sertão! Diga a lampião!
- Essa mulher tá doida! Umbuzeiro e Aritana voltam para o acampamento.
Lampião apeava os cavalos para descerem até o pé da serra do Canine, no mesmo lugar onde esteve em 1931 com sua amada Maria Bonita.
- Chefe! Chefe!
- Isso é jeito de falar Umbuzeiro!
- Coroné, a índia tá dizendo que tem um mandacaru alegando ser o grande chefe do sertão!
- E eu com isso! Mandacaru não sai do canto, só serve quando a gente precisa espetar alguém, é ou num é Pinga fogo? Seu Pinga fogo, um caboclo forte, balançou a cabeça. Sua mão direita segurava um punhal, e a esquerda uma laranja doce como o mel.
- É seu Virgulino, se eles vierem tem, vai ser que nem em Serra Talhada. O bando comia beiju enquanto isso Rozental procura a reunião dos mandacarus na Lagoa Real “Mas, onde vai ser essa reunião na Lagoa Real?” Perguntou Rozental a si mesmo, pois, o lugar era muito grande e bonito. O homem caminhou pelos pastos e pelas águas da lagoa e nada de reunião. “Estou andando em círculos”. Pensou ele novamente.
- Psiu! Psiu! Rozental! O homem vira-se para ver quem o chamava e a ninguém viu.
- Ei, é aqui! Rozental olhou para uma pedra; era, na verdade, uma rocha metamórfica. Muito dura por sinal.
- Você precisa seguir as cercas onde o arame tá quebrado, foi por lá que ele passou. Rozental agradeceu e quis sair da presença da pedra para seguir seu caminho.
- Ei, moço! Tá vendo a serra?
- Estou.
- Pois Lampião chegou com seus jagunços e vão comer beiju no pé de serra onde ele ficava pelos idos de 1931. Cuidado que o homem é perigoso. Foi aqui mesmo, em cima de meus lombos que ele furou um peão de nome Nonato que trabalhava para um povo aí da cidade de Campos.
- Mas, dona pedra, esse deve ser seu nome. Desculpe, não tenho o costume de falar com pedras, contudo, preciso entender o que ocorre. Afinal, estou morto, sonhando, ferido, demente, ou o que?
- Meu caro professor espere um pouco, pois, preciso estalar. O sol aquece a pedra e com a queda da tarde, um vento frio desce a serra; é nessa hora que as pedras gemem. A pedra deu um estalo, e da rachadura escorreu sangue e água.
- Você é uma pedra cristã?
- ah, você pergunta por causa do sangue e da água, num é?
- Isso! Como você fez isso?
- Não fui eu, foi você. Quem diz de nós é a criatura inteligente, vossa fé fez o mundo. Mas, deixa isso para outro sertão. Sim, falávamos da reunião, siga as cercas quebradas que você encontrará a irmandade das cactáceas. Mas, seja rápido, o tempo se esgota! Rozental seguiu caminho, e a pedra ficou no mesmo lugar.
Enquanto a ambulância não chegava de Tobias, a comunidade do Jabiberi fazia uma vigília de intercessão pelo velho professor de crianças. Ninguém sabia nada, tudo que se tinha era que seu coração batia. De súbito, Rozental deu um sorriso. Suely, ex – aluna do educador chorou de emoção e disse: “Rozental tá vendo os anjos!” Com isso a comoção do povo foi muito grande. Ruanês, um funcionário público, disse alguns versos em voz alta com a mão direita erguida na direção da Serra do Canine:
“Foi de lá que veio Belchior Moreira;
O homem tinha sede de prata como se ela fosse água.
Atrás dele vieram os vagueiros, e o gado pisando o chão;
Daí pra frente, a terra de Campos perdeu seu irmão;
E o Kariri foi enterrado na lama do rio coberto com folhas de aroeira”.
Rozental caminha seguindo a pista dada pela pedra. De fato, por onde passou o mandacaru, as cercas estavam quebradas. Atrás de seu rasto caminhava o ilustre tobiense Rozental Barreto. Numa baixada, próxima a um ribeiro que alimenta a Lagoa Real estavam todos os mandacarus reunidos. O som de suas falas assustou os carcarás e os urubus que estavam querendo se aquietar porque a tarde virava tardinha. Um camaleão bem verde e grande conversava calmamente com um teiú parente seu.
- Por mim, que todos os homens morram! Estou cansado de ser caça. Disse o camaleão alternando suas cores conforme as impressões de seus nervos.
- Ah, coisa é comigo! Estou farto de ser caçado nos cemitérios! Vai faltar defunto depois, mas, a gente se adapta, entendeu parente?
- Sei meu caro! Por isso, nós que somos natureza pura precisamos nos unir.
- Mas, há um problema.
- Qual?
- A falta de cobra é muito grande. Para construírem os pastos e suas cidades eles mataram as cobras quase todas. Restam algumas famílias aqui e ali. Isso significa que teremos escassez de alimentos por causa dos humanos.
- Acredito que o mundo será melhor sem eles. O camaleão viu uma mutuca e foi caça-la, a moça parecia saudável e era uma iguaria muito valiosa para aqueles répteis. O teiú seguiu seu caminho, melhor dizendo, entrou em seu buraco e sumiu.
Rozental avista a reunião dos mandacarus. Todo aquele pasto ficara verde, tão verde que não se via o verde do juazeiro. Alguém, na roça falou que eles foram convidados para a reunião, mas, não foram por causa do sentimento que eles têm pelos humanos e seus bichinhos. “Os humanos podem melhorar, tenham fé em Okaru!” Okaru era a deusa mãe que para os índios de lá representava a natureza e suas leis.
A presença de Rozental foi sentida de imediato. Um mandacaru vidente viu, olhando num cactos pequenino, que viria até o mundo deles, dois grandes homens com estradas diferentes. Um vinha do presente, e o outro do passado. O primeiro havia chegado – Rozental – o professor do sertão e do sertanejo!
- Sua presença desonra nossa espécie. É por causa de vocês que nós estamos desaparecendo e o equilíbrio magnético do sertão está abalado.
- Meu caro mandacaru, vejo pelos seus espinhos grandes e afiados que sua pessoa é um homem feito, digo, desculpe, um mandacaru feito. Eu nada tenho a ver com isso, estou aqui somente de passagem, na verdade, me responda, eu estou aqui mesmo?
- Vejam a prova cabal do que digo: “Eles não acreditam em seus próprios sonhos”.
- Não! Eu acredito! Todos os mandacarus sorriram em coro escarnecendo de Rozental. O mandacaru rei continuou.
- Vejam que eliminar o povoado e depois a cidade vai nos libertar das ideias dos humanos, de seu sistema político, e de suas loucuras; eu admito, detesto quando eles põem fogo no pasto, é um absurdo! Um mandacaru baixinho com voz afeminada pergunta ao grupo.
- Olha, eu gostaria de saber se isso vai nos trazer alguma chuva porque apesar de ser uma cactácea, eu também tenho sede e não chove há muitos dias. Gente o calor está insuportável!
- Isso é uma vergonha! Disse o mandacaru rei. Este tipo de cactácea envergonha nossa espécie!
- Por que meu bem? Por que?
- Todos temos direitos! Até que fim nós temos consciência, bem! Hoje eu sei o que é ser um mandacaru gay. O grupo inteiro deu risada. As fêmeas se juntaram ao moço sensível e o consolava.
- Saiam suas danadas! Vocês estão me espetando! Mas muito obrigada pela gentileza!
O mandacaru rei continuou sua fala com o docente Rozental.
- Vocês humanos gostam de destruir para construir suas vidas. Será que vocês nunca viram que destruindo o meio onde está a vida a vida seria ameaçada? Nós mandacarus decidimos nos revoltar e vamos impor a ordem natural novamente.
- Mas, com todo respeito a vossa excelência, sua magnânima pessoa deve entender que sois poucos atualmente, e vossos espinhos de nada servem contra as armas humanas. Não tens aliados, ou tens?
- As garças tem, sim, um interesse forte em se unir a nós. Estou agora mesmo esperando a garça chefe para dialogarmos. Ela produz sons orais incompreensíveis, precisamos de alguém que domine a língua de sinais. O amigo sabe essa língua.
- Sim, posso ajudar, mas, não tem como mudar esses planos de atacar os humanos? Penso mais em vocês de que em nós. Nossas armas são quase invencíveis. Concluiu Rozental.
- Veja a sua presunção! Mal o mandacaru terminou a palavra, a garça chefe pousa na galha de um pé de aroeira vermelha. O dialogo entre o mandacaru e garça começa.
- Precisamos de artilharia aérea. Você garças podem fazer isso?
- Com certeza! Temos todo interesse de destruir os humanos. Nossa simbiose com o gado nos diz que os rebanhos se multiplicarão caso parem a matança. Se não tiver gente para comer o boi eles não mais serão mortos. Os carrapatos são nossa dieta favorita. Mais gado, mais carrapato, mais garças felizes! Concluiu ave sinistra. Rozental perguntou, na linguagem de sinais, se não seria melhor uma reunião com os humanos antes do ataque. A garça respondeu que foram muito humilhadas no passado, e que suas existências na terra se explicam pelo funcionalismo “garça come carrapato garça merece viver”, e isso era muito humilhante para um ser aéreo. O mandacaru, nervoso recebe uma visita inesperada. Era a cobra cascavel. Ela contou que soube da reunião enquanto se alimentava de insetos, próximo à barragem, e que logo veio para dizer que essa batalha é dos anfíbios também, “Em nome de todas as cobras mortas por mera diversão e lazer, nós nos rebelamos nesses sertões”. Os mandacarus deram risadas, um pouco apertadas devido aos espinhos que nasceram próximo à suas bocas. A estratégia então seria essa: Exército terrestre – a infantaria de mandacarus; equipe aérea – garças que usariam espinhos envenenados e os atirariam nos humanos. E a equipe rasteira e traiçoeira – as cobras, animais sofredores, caluniados desde o Éden. Rozental foi convidado pelo mandacaru secretário, um tipo de escrivão que registrava tudo, a ser chanceler da natureza e observador para que, em caso de violação das leis de Genebra, ele denunciasse ao Greenpeace. “Estamos em suas mãos Rozental”.
Enquanto isso Lampião chega ao povoado Jabiberi. O coronel do sertão e seus homens ocupam a cidade e violentam algumas moças. Depois de violentadas, as meninas andaram como zumbis pela praça do povoado. Dona Quidinha que vendia geladinho, e que segundo Marcos, aluno da escola pública, era o melhor geladinho do mundo, disse para Lampião ouvir: “Todas as almas que você matou foram para os mandacarus e eles vão te pegar”. A mulher mal fechou a boca levou um tiro na cabeça. O povo do povoado estava desesperado. Roselito, irmão de um professor local teve um passamento quando viu o punhal de Corisco. Assim ele comentou: “Meu Deus enfiar um punhal daquele nos outros é muita crueldade!” A noite chegou no sertão, o outro dia seria decisivo para todos.
A ambulância demorava a chegar e Rozental estava deitado no ônibus assistido pelas orações do povo do povoado. Ele não sabia que era tão querido naquele lugar. “Deus salve Rozental” Pediu dona Guilhermina que faz bordados. “Meu Deus ajude Rozental, não o deixe morrer!” Pediu com muita fé Dona Maria.
Amanheceu com sol forte o sertão de Campos. A população local percebeu rápido que havia algo errado. A terra estava rasgada porque os mandacarus se arrastavam para poderem andar. Seus pés estavam enfincados no chão. As aves iniciaram o ataque aéreo contra o povoado. Os espinhos envenenados surtiram efeito e o povo foi caindo morto. Lampião soube do ocorrido e entrou em alerta. “Mas que diabo é isso?” Perguntou o cangaceiro. Ele tinha cinquenta valentes a sua disposição. “Homens, atirem em tudo que se mover, fiquem alertas, Aqui tem mandinga!” Alguns homens de Lampião morreram envenenados, outros mordidos por cobra, e outros pelos mandacarus. A morte causada por um mandacaru era terrível. Durante séculos eles desenvolveram o espinho encefálico. Quando um mandacaru se aproxima de você ele injeta no seu bulbo craniano ou pelos olhos um espinho de sete centímetros que causa morte dolorosa quase imediata. As pessoas não sabiam. Elas se aproximavam dos mandacarus e os espinhos eram lançados.
Rozental soube da presença de Lampião no Jabiberi. Ele disse que parece que o tempo se cruza. O passado se cruza com o presente, é somente os homens acreditarem em seus sonhos. A morte de cangaceiros e de civis sensibilizou o Jabiberi. Esta foi uma das poucas vezes que o cangaceiro Lampião perdeu uma peleja. Contudo, Lampião não deixaria o povoado abandonado. “Em nome do padim do Juazeiro eu vou lutar inté a morte, mas, vamos salvar o Jabiberi!”. De vilão a herói, passou o coronel Virgulino Ferreira.
As baixas foram se tornando grande dos dois lados. Os humanos perceberam quem eram seus inimigos, e mesmo sem nada entender partiram para o ataque sistematizado. Uma nuvem gigante de garças cobre o povoado e logo em seguida uma chuva de espinhos envenenados cai sobre a população. Os tiros eram disparados em todas as direções, garças e homens tombavam ao chão a todo instante. Dona Luzia que era Protestante disse que aquilo era a volta de Cristo. Sebastião que era testemunha de Jeová disse que era Deus limpando o mundo para transformá-lo em paraíso novamente. As opiniões eram várias, e as mortes eram muitas.
Rozental se angustiou e pediu aos mandacarus que parassem o ataque para um diálogo. Ele aceitou em nome da reputação que sua espécie tem no sertão que, aliás, deveria ser mais respeitada. Lampião reuniu o povoado no mercado atrás da igreja, o cangaceiro aceitou negociar com os mandacarus. O chanceler Rozental intermediaria o encontro das duas forças militares.
- Rapaz, que covardia da peste macho, atacar o povo de cima, com espinhos envenenados com veneno de cobra? Coisa feia, macho espinhento!
- Em primeiro lugar, peço a Rozental que diga a esse cavalheiro que esses não são modos de falar com uma autoridade. Sua pessoa, Lampião, é um assassino cruel e vem me falar de mortes? Isso é ridículo!
- As pessoas dizem o que querem de mim, Uns me dão bondade outros maldade.
- Mas, existem os fatos e contra eles não tem argumentos. Você é um assassino cruel com arroubos de bondade. É um quadro psicótico típico.
- Olhe seu ruma de pontas, nós vamos acabar com a raça de vocês! Virgulino puxou o punhal e partiu para cima do mandacaru rei, mas, sem sucesso, uma moita de cobras coral apareceu entre os dois. As últimas palavras de Virgulino foram: “Vou levar o professor, ou vocês param, ou amanhã a cabeça dele estará pendurada no cruzeiro na entrada do povoado!” Os jagunços levaram Rozental e o prenderam em seu acampamento.
Os mandacarus se reuniram com as cobras e as garças. Viram que o professor era um homem bom e não merecia perder a cabeça. Mas, a situação não podia continuar. Uma jiboia entra na conversa e diz. “Vamos sequestrar o docente esta noite, e depois a gente continua o ataque”. O povo do Jabiberi dizia: “Bem feito, quem mandou andar com coisa ruim, ah, uma escopeta!” Naquela mesma noite, as cobras foram libertar Rozental. O professor estava dormindo quando uma jaracuçu verdinha o acorda dizendo: “Vamos se vista!” Rozental pôs as calças e foi com as cobras. Infelizmente, não se sabe o que houve; sabe-se apenas que um grupo grande de cururus interceptaram as cobras e as comeram; o coaxo anfíbio acordou o acampamento. “Olhem, Rozental está fugindo!”. No outro dia, às dez da manhã, Rozental é executado, sua cabeça pendurada na trave vertical do cruzeiro, na entrada do povoado. Todo o povoado se entristece. O povo chorava a morte do ilustre pedagogo. Os mandacarus, muito emotivos mandaram condolências à família da vítima, mas, não tiveram resposta. Todos foram para suas casas, inclusive o cangaceiro Lampião.
- Rozental! Rozental! Gritou o paramédico do SAMU. O homem não dava resposta.
- Temos que leva-lo a Aracaju! A ambulância saiu do Jabiberi rumo a capital; nela Rozental continuava sua vidência:
Em respeito à morte de Rozental, os mandacarus pararam os ataques; Lampião decidiu subir para Olindina, pois, queria ele acertar umas contas por lá. Logo, logo as pessoas se esqueceram da guerra com os mandacarus e de Lampião. O finado Rozental teve missa de sete e vinte um dias, depois só mais uma, a de ano. Foi nessa quadra que um grupo de alunos da escola pública do Jabiberi se deparou com uma coisa muito estranha. Uma pedra gemia muito.
- Uma pedra gemendo? Olhem deixem de absurdo! Parem com isso! Disse o professor Vicente.
- Mas, é verdade professor!
- Vocês são crianças e estão imaginando coisas. A conversa foi encerrada.
Todo mundo sabe que criança é muito leal ao que ver e elas viram a pedra gemendo. No dia seguinte tornaram lá. A pedra que atendeu a Rozental tornara a gemer. A população foi às pressas ver o mistério.
- Olha a pedra tem lágrimas!
- Veja Ruanês aqui em cima parece uma barriga de mulher grávida.
- Rapaz, é mesmo!
Quanto mais se falava, mais chegava gente. Uma multidão, agora, cercava pedra metamórfica.
- Veja, a pedra está abrindo as pernas!
- Tá doida mulher, a pedra não tem pernas!
- Rapaz, olha aí! Está se formando. Eu vejo certinho!
- Rapaz, é mesmo, e tem barriga também! O povo do Jabiberi entrou em prece pela pedra. A ladainha ia longe. Susana Alves, líder do Grupo de Oração Coração de Jesus, iniciou uma novena in locus pela pedra. Ninguém mais falava outra coisa – “a Pedra parturiente”. Foi numa terça-feira, ao meio dia, com o sol ardente e implacável, que a pedra rachou formando uma vagina. A dor foi grande, escorria água e sangue de suas entranhas. As mulheres experientes disseram: “Rasgou a bolsa, agora é questão de tempo”. Outras disseram: “E se for uma cesariana? Como vão levar a pedra?” Estas e outras questões povoavam a mente do povo quando o céu se torna subitamente cinzento; uma garoa fina começa a cair. Alguns foram procurar abrigo em suas casas, outros continuaram ao lado da pedra. Os gemidos da rocha metamórfica eram agudos e sentidos. As pessoas sabiam que ela estava sofrendo. A chuva ficou mais forte; choveu sem cessar por cinco minutos; os tanque ficaram cheios, os rios, ribeiros e riachos transbordaram, e pasmem! Os mandacarus floresceram, sim, todos os mandacarus floresceram. Quando a chuva parou, o professor Rozental estava todo molhado ao lado da pedra que aos poucos virava areia.
Desde então, ninguém mais se lembrou de Lampião nem dos mandacarus rebeldes. O Sertão voltou a ter paz. Todas as estradas levam a algum lugar. A de Rozental o levou ao hospital em Aracaju.
- Rapaz que paciente estranho é esse?
- Doutor Nonato! Nunca vi em toda a minha vida, uma cabeça humana costurada de volta ao corpo. Alguém costurou a cabeça desse cara e usou algum tipo de instrumento desconhecido pela ciência. Sim, veja aqui!
Levaram o pedaço de tecido de pele de Rozental. No microscópio, viram que a fibra que estava no tecido de pele do pescoço do professor, era fibra de espinho de alguma cactácea. Esse sertão tem coisas. Não tem? Tem muita coisa nesse sertão de Deus, mas, também tem gente, tem muita gente...
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