Mortes
Dagalberto morou em um orfanato até completar a maioridade. Fez os cursos de técnico em eletrônica e de auxiliar de enfermagem. Aos 24 anos comprou uma casa em Tobias onde pôs sua oficina de concertos de eletro-eletrônicos em geral. Sua oficina, na Rua do Amparo, perto do cemitério, ficou muito conhecida. Dagalberto era um homem só, não tinha mulher, filhos ou amigos. Falava o bastante para ganhar seu pão e conquistar seus fregueses.
- E qual era o problema na televisão Dagalberto?
- Rapaz. É o tubo de imagem que está velho. Posso trocar umas peças, mas, num dou garantia, não. Respondeu Dagalberto como sempre. Sua voz era baixa e certeira. O rapaz não estragava as palavras.
A vida na Vila de Campos nas segundas feiras ganha um calor maior de que o de seu sol quente no mês de março. As pessoas correm para a feira e o formigueiro de gente toma conta da cidade. Vem gente da Barroca, de Monte Coelhos, Curtume, das cidades e povoados da Bahia. A feira de Tobias é muito grande. A Avenida Sete, e a Getúlio Vargas ficam sem espaço para o povo passar. Até na Rua do Amparo perto do cemitério se juntam pessoas que vieram visitar seus parentes ou apenas se alojarem durante a feira que começa no domingo e termina na segunda às seis da noite. Durante a noite Dagalberto tinha pesadelos. Muitas vezes sonhava com a mãe que nunca viu. Em estado de sonolência conversava com ela vários minutos. A finada Miralva que o diga, Deus a tenha. Miralva foi uma mãe para Dagalberto. O rapaz quando vivia no orfanato conheceu esta mulher idosa, e ela se agradou dele e continuou visitando-o até quando ele saiu. Ele foi morar com a velha, mas, cinco anos depois ela faleceu de morte morrida. Enquanto ele morou com Miralva nada lhe faltou e pode estudar terminando o segundo grau e fazendo cursos. Quando ela morreu, ele vendeu a casa dela, pois, ela não tinha parentes e veio,num sei porque, para Tobias. No dia em que o rapaz chegou à rodoviária, eu estava na academia de Jorge e vi quando ele desceu do ônibus. Achei estranho, um rapaz sozinho, veio fazer o que? Miralva deixou alguma coisa para ele, e ele comprou uma casa aqui, o povo vem para Tobias e traz suas estórias.
- Você conhece este rapaz, Rafael?
- Não. Deve ser vendedor ou representante. Sei lá?
- Calma, rapaz, cara nojento! Reclamou Thais com “th”, como ela gostava de dizer.
Thais e Rafael foram os primeiros tobienses a notarem a existência de Dagalberto em terras campenses. Depois desse dia, demoraram a ver o rapaz. Ele trabalhava de segunda a sábado em sua oficina e tinha muita clientela para atender, com o tempo, as pessoas de Tobias sabiam quem era Dagalberto.
- Ele é um gato! Comprou uma moto novinha!
- É mesmo mulher, Dagalberto é solteiro e tem seu pé de meia. Por que não? Vanice e Risia riram um bom tempo planejando uma estratégia para fazer Dagalberto abrir a boca para conversar. Numa terça feira elas chegaram à oficina com um liquidificador velho nas mãos. Elas disseram que queriam que ele desse um jeito.
- Dagalberto! Gritou Risia com voz de gatinha mimosa. O rapaz não levantou a cabeça.
- Sabe Risia não somos bem-vindas aqui. Disse Vanice. Vanice usava um short curto, exibindo suas carnes de forma muito agressiva. E por cima, ela tinha um tomara que caia que por vezes caía mesmo, deixando seus seios expostos. Dagalberto olhou por cima de seus óculos de fundo de garrafa e diz:
- Estou ocupado, deixa aí que depois eu olho. As meninas saíram com muita raiva comentando o fato assim:
- Esse tabaréu, só porque veio da capital que dá uma de educado! Disse Vanice.
- Será que ele é gay? Perguntou Risia.
- Mas que ele é um bofe é. Completou Vanice. As duas meninas desceram a Rua do Amparo e estava havendo um enterro no cemitério. Vanice ficou curiosa para saber das coisas e foi com Risia acompanhando a entrada do caixão na terra santa. As pessoas choravam; havia muita gente e logo o cemitério foi tomado pelas pessoas.
- Vanice, quem morreu foi Anacleto de Rosalva, mulher! Disse Risia assustada.
- Não acredito! Mas acredito porque estou vendo! Mulher que é isso agora os homens morrem assim, e ninguém sabe como? Ele estava ontem bebendo no bar de Walter na avenida!
As moças ficaram até as tantas e não perderam uma cena se quer. O povo de Tobias deixa o cemitério somente depois que a cova é fechada e enquanto isso as pessoas aproveitam para comentarem a morte.
- Dizem que acharam evidências, como é? A palavra é essa mesmo? Perguntou Adão do posto de lavagem.
- É, continue! Disse curioso o professor Lindalvo do Risca Faca.
- Pois é, acharam evidências que ele fez sexo anal antes de morrer. Concluiu Adão.
- Rapaz, bem que eu desconfiava de Anacleto. Um dia o vi discutindo com Dagalberto na oficina quando ele morava lá. Desconfiei que houvesse algo errado porque ele nunca fala e naquela noite Dagalberto falava alto e gesticulava, parecia uma bicha. Dagalberto quando se estabeleceu comprou outra casa e foi morar com uma senhora idosa chamada Herculana. A família dela a pôs no asilo, mas, Dagalberto muito católico, pediu a família para cuidar da velhinha. Herculana era uma velhinha que tinha tido um derrame, não falava e passava a vida numa cadeira de rodas. Vanice e Risia ouviram comentários como esse e ficaram ainda mais curiosas. Perto de um jázigo grande, de mármore escuro, estavam duas senhoras a conversar.
- Mulher este é o quinto caso de homem casado morto com marcas no ânus. Primeiro foi Tião da madeireira, depois foi Raimundo do açougue, depois o Zé Carlos que trabalha no supermercado, e em seguida foi o anãozinho da rodoviária. Todos com marcas nas costas e no ânus. Será que os homens de Tobias tão virando...?
- Deixa disso mulher! Cortou a conversa a vereadora Maria de Melo, mulher de Chico, o motorista do prefeito. Vanice e Risia cresceram ainda mais a curiosidade e quando fecharam à cova, elas foram para a Praça do Cruzeiro colocar a fofoca em dia.
- As marcas foram todas por trás. E o ânus dele, como comentaram, estava forçado. O que sugere que foi feito sexo.
- Você está sabida, Vanice. Disse Risia acrescentando que havia mais quatro homens com os mesmos sinais e todos foram estrangulados por trás.
A cidade não comentava outra coisa. Um pastor pregou no domingo que tudo era a prova da volta de Cristo e que o diabo estava desesperado. Já o padre apelou para as famílias guardarem seus filhos em casa. As ruas e avenidas da cidade estavam cheias de cadeiras e quando o carro da policia passava o povo se levantava e observava que direção ele tomava, depois, a conversa iniciava novamente.
- Eu acho que estas mortes estão ocorrendo devido à fúria de alguma mulher que descobriu a vida amorosa de seu marido. Isso é vingança de mulher. Disse Paulo de dulcinha.
- Então Paulo, a corna pirou e saiu matando os homens? Perguntou Alice da farmácia.
Passaram os meses. Os anos vieram logo e nada do assassino. A cidade esqueceu a estória. Aqui e ali alguém comentava o caso. Chamaram, nas santas missões, os franciscanos para benzerem os quatro cantos da cidade. E pediram a Nossa Senhora sua benção.
“Que Deus abençoe nossa terra. Aqui é um lugar de gente boa e decente”. Disse frei Gustavo com muita emoção.
O tempo continuou passando quando a primavera de 1988 chegou trazendo para Dagalberto muita tristeza. Herculana ficou pior. A mulher que nada falava agora deu para chorar e chamar pelos parentes.
“Muié amarra a pindoba aí, cadê Sebastião! Gritava a velha”. Diziam os parentes que eram lembranças dos tempos do Rio Real. Herculana fora casada com Sebastião, um vendedor de feira livre.
Outras vezes a mulher gritava: “Dagalberto, deixe sua mãe em paz, menino!” Dagalberto negava o fato, mas não tinha mais o que dizer. Herculana começou a dizer coisas bem esquisitas.
“Esse moço briga com a mãe toda noite, meu fio. Eu num gosto dele, não, ele faz coisas com a mãe dele”. “Miralva! Oh, Miralva!” Dagalberto achava coincidência Herculana chamar por uma pessoa que ela não conhecia.
O povo ouvia as estórias e nada levava a sério. A velha morreu. Seu enterro foi simples e poucas pessoas acompanharam o cortejo. A velha foi enterrada ao lado de Anacleto. Quando os coveiros foram fechar a cova, o caixão da velha caiu e isso revoltou Dagalberto. O moço entrou em um estado de fúria e pegou a pá de um dos homens e partiu para bater neles com violência. As pessoas não deixaram, tentando acalmar as coisas. Dagalberto xingou os coveiros com tanta raiva que todo o povo comentou o episódio. Consolado da morte de Herculana Dagalberto fez preparativos para ir morar em Nova Sores na Bahia. O pessoal da paróquia convidou o rapaz para homenageá-lo com um jantar de despedida. ”Um rapaz pobre que veio de fora, morou em orfanato, trabalhou, deu bom exemplo, ajudou os pobres, um irmão que dificilmente vamos esquecer”.
- Miralva, você acredita nisso?
- Não!
A despedida da Vila de Campos foi calorosa. As pessoas desejaram a Dagalberto toda a felicidade do mundo. Nova Sores dista pouco mais de uma hora de Tobias. O amanhecer de sábado trouxe Dagalberto e sua bagagem para a Bahia de todos os Santos.
- Olha! Como vai? Não sabia que você ia me encontrar aqui?
- Deixe disso Dagalberto. E meu cabelo como está, gostou?
- Arrasou Rafael, você está um gato. Vamos!
Dagalberto entrou no carro de Rafael. Nunca se sabe ao certo sobre as coisas. As mortes em Tobias nunca foram explicadas. Nem as de Nova Sores. Na Bahia os homens foram amarrados antes de terem seus pênis mutilados. Rafael reclamou muito das noites que passou com Dagalberto em Sores. “Ele brigava a noite inteira com a mãe, a chamava de puta e que tinha abandonado seu pai”. Rafael voltou para Tobias são e salvo.
- Miralva!
- Sim, Herculana!
- Mulher, Deus é justo...
Dagalberto continuou vivendo sozinho em Sores na Bahia. Rafael o deixou devido as suas crises de sonambulismo. O jovem Dagalberto alguns anos depois foi achado morto em sua casa com hematomas em todo o corpo incluindo o ânus.
Caro Roosevelt, este conto me prendeu a atenção por longos minutos. Creio que, para além do suspense que daria pano pra a manga caso fôssemos discuti-lo, há excepcional verossimilhança na sua escrita, dada a sua experiência e capacidade descritiva e, neste caso em específico, sobretudo narrativa.
ResponderExcluirGrande conto de um grande autor.
Abraço!