Elizabete
saiu cedo esta noite. Recordo-me do barulho da porta da sala de estar
quando ela deixou a casa. Depois sobre todos nós veio um estranho e
forte silêncio. O vento da praia soprava pelas janelas trazendo o gemido
das ondas na beira do mar. As velas da sala e da cozinha estavam
acesas. Do lado de fora, um rapaz com cara de sulista descasca uma
laranja com as unhas calmamente. A porta da cozinha batia para lá e para
cá pelo vento que soprava dos fundos. Recordo que voltei para o meu
canto e lá fiquei. Mas, saibam que embora fora do problema, eu o vi
acontecer bem defronte meus olhos.
A
meia noite veio logo. Pensei que era uma brincadeira pueril assustar
uma pessoa com histórias de coisas do outro mundo. Esta meia noite foi
fria e silenciosa. A família se reuniu e todos contaram de si e alguma
novidade. Por isso que fui para meu canto. Não suporto mais quando ele
conta aquelas histórias de lampião. “Nego veio, Lampião matou muita
gente, mas, era um homem bom; esse lado da história o povo não conta”.
De
fato, ele estava velho e cansado. A despeito da velhice e do cansaço
ele estava muito lúcido. Elizabete dissera: “Pai, volto logo, é um
tapa!” O velho coçou a cabeça e disse com voz rouca: “Deus te abençoe,
filha!” Elizabete saiu para visitar uns amigos que moravam do outro lado
da cidade. Eu vi quando ela entrou em um carro preto. Elizabete saiu
com os amigos.
Retornei
para a casa do velho na madrugada. Umas três horas eu ouvi o ronco de
Guilherme. Foi o rapaz da laranja que caiu no sono após ouvir o jogo de
futebol no radio velho. A casa estava solitária. Darci e Pedro dormiam
no chão. Achei muito estranho aquilo. No entanto, o que é que eu tenho a
ver com isso? Não é assunto meu! Andei pela casa até me cansar. Então
sentei em frente à televisão e fiquei vendo os programas.
Repentinamente, eu apaguei, entrei numa viagem mental pelas formas e
cores que fluíam daquela tela...
Eu
estava em Campos de Rio Real. Era época de muita chuva. O mês de julho
entrou molhado. A cidade respirava eleição. Uma grande disputa em Campos
estava ocorrendo. Do lado dos Cabaus, os Ferreiras respondiam; e do
lado dos Pebas, Os Gonçalves davam a última palavra. A briga estava
feita. E Robertinho no meio! Esse era um rapaz de ouro, o único problema
segundo sua namorada era ele ser filho de um Peba, o doutor Aristóteles
– o médico de sua família, como ele gostava de dizer. Amélia amava
Robertinho, e Robertinho amava Amélia.
A
duas famílias não apoiavam o amor deles, por isso eles foram morar em
uma casa de praia para as bandas do mosqueiro. O pequeno sítio tinha
coqueiros, laranja, e até um pé de jaca. A casa era confortável e com
quatro quartos espaçosos com guarda – roupa e todo o conforto. O
problema era que naquela época não tinha luz ali. As velas e candeeiros
iluminavam a casa durante as noites. Por muito tempo aquele foi um lugar
que muita gente boa gostou de visitar.
- Se sente melhor agora? Perguntou ao moço um homem com jaleco branco.
- Claro doutor! Eu parei onde mesmo?
- Deixa para lá, Gumercindo!
-
Mas, olha que moço bonito! Uma senhora de meia idade entra na conversa
subitamente. O estranho rapaz para o diálogo com o médico para examinar a
pessoa diante de seus olhos.
- Ela é quem mesmo? Perguntou o moço quase gaguejando. A mulher olha para o médico com o olhar de desconfiada e desesperança.
- Lamento Deusita, mas, o caso é esse. A senhora de meia idade cujo nome era Deusita deixa médico e paciente a sós de novo.
Eu
me lembro daquele tempo que todos nós sentávamos ao redor da fogueira
para comer milho assado e soltar fogos. Oh, tempo bom meu Deus! Sabe,
Carla era tão bonita, eu me lembro dela. Mas, aposto que ela já casou!
As pessoas são assim, casam e vão embora deixando um pedaço de suas
vidas para trás. As coisas pareciam ser assim com Gumercindo.
-
Seu Gumercindo dá licença! A mulher afro descendente levanta a camisa
do rapaz e injeta uma substância em suas veias. “Pronto!” “Doeu?” “Não
me diga isso!” o homem tornou a falar.
“Bem, eu estava mesmo era me lembrando de Campos quando nós chegamos por aqui”.
- Ele fica assim o dia quase todo.
- E o que é isso doutor?
- É um tipo de esquizofrenia muito delicado.
- Tem jeito?
- Todo mundo fala só, não é?
- É, mas, esse é diferente.
Levaram
Gumercindo para o quarto. A injeção estava fazendo efeito. O pobre
homem foi levado na mesma cadeira que sentava. “Todas as vezes que ele
falar assim compulsivamente aplique nele a mesma quantidade de hoje”.
Calaram Gumercindo novamente. Naquela clínica a paciência era muito
pouca. Sua esposa Deusita o visitava todo final de semana, mas, quando
ele enganchava na conversa, ela se retirava. Ela pediu a clínica para
sedá-lo em situações como essas. Afinal, quem suporta escutar uma
conversa partida?
Gumercindo
adormecendo em seu leito solitário, por um instante, muito breve por
sinal, olha para os lados para ver se alguém o via. Gumercindo
levanta-se da cama e segue em direção ao banheiro. O banheiro era um dos
melhores lugares para o pobre Gumercindo, pois, era um lugar quase seu.
Ele puxa a porta do armário e retira de dentro umas anotações que ele
andava fazendo aquelas noites. O paciente da Clínica Repouso Seguro
folheia seus escritos. Dia 21 de março de 1998:
“Mais
uma vez a segui depois do horário de trabalho; seu telefone foi às
17:58 para me avisar que chegaria por volta das seis da tarde. Ela
estacionou o carro no shopping center e entrou no recinto; me contive
permanecendo no estacionamento; ela logo apareceu; meu Deus eu não
acredito nisso? Isso não é possível; até você Deusita!” Gumercindo lia o
texto e repetia tudo novamente. Ele queria encontrar um nexo lógico
para tudo que vivera, mas, parece que o mundo era agora algo muito
difícil de ser entendido. “Eu digo as pessoas e elas me dizem: ‘É
impossível’” “Será que enlouqueci?” “Acho que devo ir fundo nessa
história”.
De
fato Gumercindo pagou uma investigação privada para esclarecer os fatos
de vez. Em pouco tempo, ele tinha nomes, endereços e horários.
Gumercindo passou a ser a sombra daquela mulher. Ele alugou um quarto no
motel onde ela se encontrava com seu amante. Por uma câmera ele
acompanhava tudo que ela fazia. Depois de um determinado tempo,
Gumercindo percebe que seus pensamentos estavam, digamos, um pouco fora
do usual. Depois as dores de cabeça vieram, e com elas algumas
alucinações.
- Mulher teu marido está louco!
- Que é isso gente!
Deusita internou Gumercindo. Desde então ela vive de sua pensão e de alguns trocados que ela ganha como técnica de informática.
Gumercindo
sai de seu lugar favorito e volta para sua cama. O sono estava tomando
conta dele. O homem nordestino acostumado com uma vida dura para ter
conforto se rendia ao efeito do calmante. Seus olhos se fecham como
janelas de uma casa solitária. O sono se apodera do homem. Seu rosto
mostra as contrações que criam rugas, ora de alegria e prazer, ora de
dor e sofrimento. Sua respiração e os seus batimentos cardíacos
compunham uma sinfonia a parte. O enredo da trama que se desenvolvia em
sua mente; ninguém jamais soube.
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