No pequeno Povoado baiano da “Lagoa Redonda”, vizinho a Tobias Barreto, ocorreu um fato muito curioso. Um homem acordou de noite sobre uma cova do pequeno cemitério do povoado. O rapaz se ergueu com certa dificuldade e caminhou em busca de ajuda. Eram dez da noite. Todos estavam em casa. Ninguém viu o estranho andando pela pista do povoado. Como ele não encontrou ninguém e vencido pelo extremo e inexplicável cansaço decidiu bater na porta de uma casa muito humilde.
- Boa noite! Vocês podem me ajudar?
- Como moço? Disse uma moça negra segurando uma criança nos braços.
- Que lugar é esse?
- Moço, aqui, é a Lagoa Redonda. Respondeu a mulher abrindo um sorriso mostrando a boca com dentição perfeita.
- Lagoa Redonda! O homem caiu no pé da porta de dona Florinda. A mulher corre para a vizinha em busca de socorro. Imediatamente a frente de sua casa estava repleta de curiosos.
- Será que o homem morreu?
- Quem é ele. Olhe seus documentos!
- Num tem documento, não!
- Então vamos chamar a policia! Quem anda sem documentos coisa boa num é!
- Calma mulher! Vamos primeiro levantar o homem!
Juarez e seu colega de pinga Roberto Carlos levantaram o homem e o colocaram no sofá da casa de dona Florinda.
- Chega põe ele aqui! Comadre vá pegar um copo d’água com açúcar! Tereza foi correndo pegar a água e trouxe para o rapaz. Este passava a mão na barca grisalha que muito lhe enfeitava o rosto.
- Como é seu nome, moço?
A pergunta despertou uma grande e intrigante dúvida no homem: “Como é meu nome?” O homem não tinha nome, pelo menos, por enquanto. Ele disse omitindo este detalhe: “Meu nome é Alencar”.
- Seu Alencar está melhor? Perguntou Juarez.
- Sim, parece que foi fraqueza, a barriga está gritando de fome. Florinda correu para o fogão e fritou os últimos dois ovos restantes em sua casa. Serviu ovos mexidos com pão e café ao estranho. E ele, após ter comido, recobrou a forças. O povo havia matado a curiosidade e foi, aos poucos, retornando aos seus lares. O estranho permaneceu sentado no sofá de Florinda.
A casa não tinha quase nada. Um sofá velho marrom. Uma poltrona velha amarela, uma mesa para a televisão colorida com controle remoto. No único quarto, uma cama apoiada por paralelepípedos, e um guarda – roupa que sua comadre lhe deu quando ela casou com o maldito Zé Pimenta. Na cozinha, muito apertada, estava a mesa de quatro lugares, e a geladeira seminova que ela ganhou das lojas Assuranas pelo tempo trabalhado. Florinda estava desempregada há um ano. Desde que brigou com o filho do dono das lojas Assuranas que ela nunca mais conseguiu uma vaga no comércio. Florinda vivia de faxina. Cobrava trinta reais pelo dia. Mas, como ela diz com muita frequência: “Melhor ser pobre e negra, mas, com dignidade, do que vender meu corpo a um vagabundo”. Ninguém na Lagoa Redonda podia dizer nada da mulher. Florinda era pobre, contudo, muito séria e direita.
- Hum! Hum! Florinda coça a garganta na intenção de chamar a atenção de Alencar cujo olhar estava fixo na televisão.
- Sim, dona Florinda! Disse Alencar com tristeza. Ele sabia que a mulher, certamente, iria colocá-lo no olho da rua.
- O senhor sabe né! Mas, aqui, o povo tem a língua grande; uma mulher não pode ficar sozinha com um homem, principalmente, estranho, como a sua pessoa.
- Eu sei senhora. Eu vou me retirar. Alencar se levanta, anda apenas dois passos para a porta. Subitamente, Tereza entra de casa adentro com mais comida nas mãos.
- Mulher! Você não sabe, mas, tinha este resto de galinha na panela! Dei um esquento e veja aí! Se num tá bom! Experimenta moço, deixa de prosa!
Alencar comeu o conteúdo da panela. Foi ao banheiro cujo vaso estava solto, e retornou para a sala para conversar com as estranhas.
- Eu não sei como vim parar aqui! Acordei no cemitério. Mas, como podem ver não há evidências em mim de ter morrido, ou sido vítima de violência.
- E como foi moço? Onde está seu carro? Você deve ter um carro? As mulheres pensaram isso por causa das roupas de Alencar. Elas eram todas de excelente qualidade; suas unhas eram pintadas com esmalte masculino; a pele fina das mãos foi logo percebida pelas mulheres. As mulheres são muito observadoras, o menor detalhe não lhes escapa.
- Carro? Não me lembro de ter um carro. Na verdade não me lembro de nada. Os três conversaram até o sono tomar conta de todos.
A Lagoa Redonda de manhã cedo tinha uma rotina muito curiosa. Como a água não era encanada. A comunidade ia para o chafariz escovar os dentes. Esse momento íntimo se tornou público. As pessoas aproveitavam para saber do que ocorrera durante a noite.
- Mataram Carlinhos da barroca. Deram três tiros nele.
- Quem mandou se envolver com roubo de gado!
- Sabe quem está namorando o vereador Artilhes?
- Não!
- A filha de Juarez.
- Como rapaz? Juarez estava atrás do caminhão do lixo e ouviu a séria denuncia.
- Não é o amigo não! É a filha de um Juarez aqui de Itapicuru.
- Ah, sim, agora está melhor. Filha minha não namora homem casado não! A conversa rendia, mas, o povo desceu para Tobias para trabalhar.
Alencar ficou na lagoa Redonda. Começou trabalhando com Juarez, depois, juntou um dinheiro e pôs uma venda. Com o tempo, Alencar tinha um mercadinho. O mercadinho de Alencar se tornou o maior do povoado.
- Alencar parecia doido quando chegou aqui. Mas, veja como o homem prosperou!
- Pois, foi rapaz. Mas, até hoje não se sabe nada dele. A família; se foi casado, se matou gente por aí.
- Você tem razão. O dia a dia revela tudo.
O dinheiro não trouxe a memória de Alencar de volta. Nem fez Florinda ser sua mulher. Nos primeiros anos de Alencar na Lagoa Redonda, o povo achava que Florinda ia ficar com ele, mas, a mulher dizia: “Eu gosto dele, mas, ele pode ser casado, ter família. Eu vou esperar para ver se tem coelho nessa moita”. Os dois ficavam juntos todas as noites. Não havia sexo entre eles. Alencar adorava assistir televisão com Florinda. Tereza comentava com sua comadre: “Mulher, Alencar num vive mais sem você não!” Dona Florinda respondia sua amiga assim; “Que nada mulher; homem é tudo igual, no final eles querem aquela coisa!” Florinda estava enganada. Alencar nunca esboçou um gesto ou a olhou com olhos malandros. Sua conduta era impecável. Seu único defeito era não se lembrar de seu passado.
O mês de julho do ano de 1999 havia chegado. A Escola Municipal Paulo Dantas estava dando uma festa na praça do povoado. Aquela festa era conhecida pela redondeza e muito prestigiada pela população. As pessoas das cidades de Tobias, Olindina, e a sede do povoado, Itapicuru costumavam frequentar a festa junina da Lagoa Redonda. Alencar ficou conhecido pelos quatro cantos da região. Todo mundo queria conhecer o “esquecido legal” - Um homem muito inteligente e que não se lembrava de nada de seu passado.
- Alencar a violência aumentou muito nessa região.
- E foi rapaz. Eu acho aqui um lugar tão tranquilo!
- Que nada rapaz, aqui, já foi tranquilo! A gente dormia de porta aberta. Ladrão só tinha de galinha.
- Eu sei; pena que não posso dizer nada sobre meu lugar, rapaz, já pensou você não recordar de nada? Minha mãe virou a cova onde eu acordei. Pois, só me recordo daquela noite para cá.
- Rapaz, como é isso?
- Sei lá.
- Sim, ia me esquecendo! Sabia que acharam um carro dentro de um lago em Alagoinhas?
- Não!
- Pois, era um opala. E havia um esqueleto dentro. Dizem que era de um homem. Ficou uma carteira de identidade, em fim, o documento de um dos dois. A policia está investigando o sumiço do motorista. A família do motorista está oferecendo uma recompensa para quem achar o cara.
- Sabe o nome dele? Perguntou curioso Alencar.
- Quem sabe seja você! Assim você conheceria sua família, ou a encontraria.
- É. E se num for. O coração de Alencar bateu forte.
Já faziam sete nos que Alencar estava na Lagoa. Ao longo desse tempo ele cresceu e ajudou Florinda. A mulher e a pequena Keliane passaram a ser sua família. A casa de Florinda era a mesma, no entanto, não era a mesma, pois, Alencar fez muitas reformas, mesmo, sobre a reprovação da mulher que dizia não querer ajuda de estranhos.
- Florinda meu Deus, deixa de ser idiota! O cara num é nada teu, nem pai de tua filha, mas, o cara quer te ajudar! Dá um jeitinho aí e agarra o homem!
- Deus me livre! Adultério não é o meu forte bem!
- E se ele não for casado?
- Aí, é outra história?
- E o tempo que você perdeu? Não adiantava; Tereza não convencia Florinda de se arrumar com Alencar.
No mês de agosto, o Povoado Lagoa Redonda sente o impacto do comercio de Tobias. Os ônibus chegam de todos os lugares trazendo estranhos e velhos amigos. Um estranho começa a fazer perguntas sobre Alencar. “Vocês já viram esse homem?” Essa era a pergunta que saía de sua boca. Em seguida, ele mostrava a foto de Alencar de bigode. Na lagoa, Alencar não usava bigode. O homem era tão querido pelo povo que ninguém disse nada sobre ele. Todo mundo fechou a boca, e avisaram a Alencar para se esconder. “tem gente querendo te matar”. Eles diziam assim porque o costume do lugar era não dar informações, pois, havia muita pistolagem na lagoa naquela época. No entanto, o estranho notou algo errado e decidiu se hospedar em Tobias, na Pousada Comida Caseira de seu Agnaldo Corini.
- Juarez quem é esse homem procurando Alencar? Será que ele fez algo errado?
- Sei não. Mas tem alguma coisa estranha. Asseverou Juarez. O povo todo não tinha outra prosa. “Afinal quem é Alencar?” Essa era a pergunta sem resposta. A fonte de toda a fofoca.
- Alencar, rapaz, você não lembra nada de seu passado?
- Nada rapaz. A ultima lembrança é a cova onde eu nasci de novo.
- E agora se você morrer como a gente vai avisar seus parentes.
- Eu não penso nisso porque não se sente falta do que não se lembra. As respostas de Alencar convenciam as pessoas. Todavia o homem esquecido da Lagoa Redonda soube do estranho. Alencar o seguiu e o parou para uma conversa no meio da rua, na Praça da Bandeira, em Tobias.
- Quem é o senhor. Por que me procura?
- Eu sou detetive particular. Estou aqui a mando de sua esposa. Ela está doente e quer saber de você. Ela já sabe que você está aqui. Alencar foi noutro mundo e voltou. Agora sua esposa sabia de seu paradeiro e podia vir atrás dele.
- Eu não vou mais morar com Rosangela. Diga-lhe que estou bem.
- Mas, seu Otávio, a coisa não é assim não. E os negócios da família? Disse o detetive defendo os interesses de sua cliente.
- Eu vou falar com os advogados e dizer que você estar se recusando a cooperar.
- Eu preciso de uns dias para pensar. O detetive concordou, mas, por precaução, avisou a Rosangela.
Alencar não era mais o mesmo. Ficou calado, não ia mais a casa de Florinda e conversava pouco com as pessoas. O homem se trancou em casa. O povoado o procurava no mercadinho e nada. O procurava na rua e nada. Três dias se passaram. A paciência e a curiosidade do povo não suportava mais tanto mistério. O povo invadiu a casa de Alencar.
- Onde ele está? Cadê o homem?
- Rapaz, o homem sumiu!
- Os negócios dele aqui como ficam?
- E esses remédios não são para doidos?
- Num sei não. Alencar sumiu no oco do mundo.
Acharam uma cova aberta no cemitério do povoado, a mesma onde Alencar acordou. Havia no fundo da cova, dentro do caixão, uma pequena pedra de diamante. Depois disso Juarez ficou mais rico e Florinda, finalmente, comprou seu chão de terra para plantar próximo ao Candial. O Povoado Lagoa Redonda nunca mais soube notícias de Alencar, todavia, as pessoas estranhavam o fato dos dois amigos de Alencar terem prosperado tão rápido. O detetive ligou para sua cliente.
- Dona Rosangela, o homem sumiu de novo.
- Ah, meu Deus quando é que este homem vai parar? Otávio não se conserta nunca.
- Freitas siga o rastro dele. Ele deve ter deixado alguma pista.
- Tenho suspeitas daqueles dois que tiveram vantagens.
- Se eu pelo menos soubesse que ele estava tomando os remédios, e que não feriu ninguém, eu ficaria despreocupada.
- Quanto a isso, aqui tudo está limpo! Ficou apenas a pendência do homem do Opala, mas, a policia está sem pistas. E quanto aos documentos?
- A gente dá um jeito.
- Continue a fazer o seu trabalho. Concluiu Rosangela. A mulher de Otávio ou Alencar continuou sua busca pelo marido doente até que um dia se cansou.
- Rapaz eu não te conto!
- O que?
- Você nem vai acreditar!
- O que rapaz! Diga logo seu filho da mãe!
- Acharam um cara dormindo sobre uma cova no povoado Peba.
- E foi?
- Foi.
- E quem é o homem?
- Ele, coitado, não sabe de nada.
- Estranho.
Roosevelt,
ResponderExcluirAté que limite nós podemos separar a loucura da lucidez? Alencar tomava remédios controlados e pelo que me parece ele era esquizofrênico; mas por outro lado, Alencar, ou seja, o Otávio, tinha uma memória suficientemente lucida a ponto de se lembrar de Rosangela.
Atá que limite podemos separar a loucura da lucidez e a bondade da maldade? Por um lado Alencar era um cara que durante os sete anos no povoado se provou um cara de uma dignidade e de uma honestidade inominável; por outro, Alencar, ou seja, Otávio, se provou um camarada muito do esperto e cheio dos truques.
A metáfora que fiz de seu conto é que a personalidade não é una. O que existe em nós são diversos universos que muitas vezes atuam em cenas da vida de forma honrada, mas tambem atua na vida de forma um tanto perversa. Somos vários lados que convivem muitas vezes em harmonia, mas que em certas ocasiões se imbricam de forma fantástica.
Até agora não sei se Alencar ou Otávio, quer dizer, os dois, fossem realmente louco de verdade ou se a lucidez dele fosse lúcida de mentira.
Eis a vida, estrada que ligam e afastam... (Edi Zero)
Meu caro, sua pessoa filosofou. A intenção foi deixar o leitor preso até o fim com o intuito de fazê-lo que somos desconhecidos conhecidos e conhecidos desconhecidos. Num se deve por a mão no fogo por ninguém, pois, nós nunca sabemos ao certo até o nosso alencar é otávio e até ponde sua memoria foi apagada. Os diamantes na cova indicam que ele era rico. o opala e o corpo insuna que ele era assassino. o progresso de seus amigos indica que alguém no povoada sabia a verdade. então, quem era esse cara? A volta de quem num foi é um conto psicanalítico nosso, discute as várias faces de uma mesma pessoa, e o erro da sociedade de se prender as conveções: se fulano agir assim e assim ele é boa gente. será?
ResponderExcluirRoosevelt,
ExcluirSei que eu repito bastante o que vou dizer, mas acredito que minha necessidade de insistir na repetição se deva ao fato de eu sentir que não sou bem compreendido quando afirmo o que vou dizer.
Se os humanos passassem a reconhecer essa dinâmica que você trouxe em seu texto, assim como em tantos outros, evitaríamos muitas vezes a nossa tão comum intolerência para com a diferença. Acredito eu que a maior causa dos nossos atritos, deve-se a necessidade de acreditarmos que o outro pode se revelar enquanto unidade, integridade em seus valores.
As vezes sentimos empatia por uma pessoa e criamos uma idealização dessa pessoa. Porem, esquecemos que essa pessoa traz valores nobres para as nossas expectativas, mas ela é simplesmente uma pessoa que, assim como todas as outras, comete equivocos. Se fosse para ser perfeita plenamente essa pessoa não seria humana, e sim, divina. Mas não é.
Resultado: por esperarmos e alimentarmos nosso olhar direcionando para uma crença na possivel plenitude dessa pessoa, quando ela comete esse equivoco, a gente não suporta. Aí muitas vezes o que acontece é que nós, na tentativa de insistirmos no erro, criticamos a pessoa dizendo que ela não era assim no passado, que ela foi mentirosa, quando na verdade não foi nada disso. Ela simplesmente oscila pois ela é processo, é um constante aprendizado com ela mesma.
E é aí onde mora o perigo: por não visualizarmos essa dinâmica como você trouxe em seu texto, a gente termina impondo, agindo com nosso etnocentrismo para tentar manter a unidade.
Se compreendessemos essa contradição do ser, amenizariamos nossos desconfortos e passariamos de fato a viver a tão aclamada diversidade com menos colisões, pois saberiamos que os outros nos tem amor por nos fazerem mal também e que existem aqueles a quem não simpatizamos que em uma circunstância ou outra, pode nos revelar um valor virtuoso às nossas expectativas.
Assim como uma pessoa traz valores positivos como no caso de Alencar, não se impede de poder revelar valores negativos aos nossos olhos como foi o caso do Otávio.