segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A arte, a carne e o vento

O humano é a sua própria tormenta. Dentro de sua alma, cidades inteiras são devastadas pela fúria das tempestades do amor. Sim, o amor não entendido, o amor não codificado. O amor é a principal ameaça que acolhe o humano. Ao mesmo tempo em que o dissolve, o liberta para uma paz penosa. A garantia do acolhimento é fogo que se alastra por todas as direções abafando-o pela fumaça estonteante da cegueira do que lhe falta.

A falta... grande enigma revelado ocultamente em nosso dia a dia. A falta é a grande anunciadora dos desvelamentos reticentes que machucam todos os corpos cobertos de espíritos. A espiritualidade, assim como a tamanha certeza do que se encontra diante dos olhos humanos, não passa de uma aventura rarefeita, amaldiçoada e tão admirada feita de carência permeada de incógnitas que perduram na alma do ser.

Uma chuva intensa que alaga os poros do conforto da vida inunda todas as possibilidades dos humanos enxergarem a paisagem a sua volta pela falta de claridade da luz que acham sempre que os norteia. Nas mãos- sensações, apenas folhas de papel molhadas que se dissolvem pela força colossal das águas que os cobrem com esses oceanos irritadiços e incontroláveis daquilo tudo que chamam de razão.

De tudo aquilo que se dissolve em suas mãos-sensações, nada mais lhes resta a não ser a convicção de que não têm ao seu dispor todas as explicações contidas acerca das suas lágrimas e dos seus surtos de felicidades provisórios que constavam naqueles papeis. Abrem seus dedos e apenas ficam a observar as folhas dissolvidas escorrerem pelo ralo do lado de fora de dentro das suas almas.

Só resta aos temerosos e covardes humanos a indignação de poder construir sentidos à sua volta em meio a uma existência claramente fragilizada e humilhada por serem cegos demais para encontrar todos esses sentidos que a falta tece e constrói. A finitude abre suas portas, convida-os para entrar e os trancam em um quarto escuro cheio de tempo, de espera, de expectativa, de eternidade de ânsias.

A arte! Sim, a arte pode ser o último refúgio capaz de acalentar uma turbulência de espírito sem porto como o coração do ser. É nada disso. A arte cinicamente termina por revelar tudo aquilo que estava escondido no fundo do navio e tudo aquilo que parecia seguro pela âncora que adormecia calmamente diante da inquietude do mar. A arte se faz presente, disponibiliza todos os seus sorrisos e devolve a morte que os acompanha.

Do prazer reaparecem os seus gritos traiçoeiros que os enganam o tempo inteiro. As janelas se abrem e os ventos de fora terminam também por entrar no imenso corredor de almas incessantes de sonhos, de desejos e de delírios. A arte concede ao humano todo o amor possível desse mundo, mas entrega uma carta-despedida descrente acerca de qualquer possibilidade de se viver intensamente esse mesmo amor.

A arte dá aos humanos a coragem de enfrentar os imensos rochedos do mar que os consome, mas os faz manter suas intensas covardias de aceitar as cicatrizes e ferimentos provocados pela mesma força das rochas corroídas pelas águas desse mar. A arte é a mãe prazerosa protetora do santificado acolhimento dos nossos medos, mas que abre a porta e nos deixa sós, permitindo que o mundo nos ensine a nos perder a todo instante.

Um comentário:

  1. "A arte é a mãe prazerosa protetora do santificado acolhimento dos nossos medos, mas que abre a porta e nos deixa sós, permitindo que o mundo nos ensine a nos perder a todo instante." Encaro a arte como uma dessas portas, pois acredito que se "perder" se torna necessário diante do encapsulamento do mundo objetivo. Inclusive, meu caro Vina, a arte seria a única porta ou existiriam outras possibilidades?

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