quinta-feira, 3 de abril de 2014

ANGUSTIA DOCENTE II

Quando um jovem termina o curso de pedagogia carrega no peito o desejo de fazer algo diferente na educação brasileira. Parece para ele, num primeiro momento, que a educação do Brasil é um fenômeno que precisava de sua agência individual, que o problema era que estava faltando sua abordagem. Alguns anos depois, com toda certeza, encontraremos o dito pedagogo, em algum lugar, a fazer as coisas que outrora criticava. Essa tendência à mesmice, a rotina, a nada mudar, é marca nítida da educação do sertão; pode-se dizer que até as novas ações são velhas ações, pois, ocorrem nas mesmas circunstancias que as anteriores; isso é o mesmo que dizer que “remendo novo em pano velho não combina”, algo parecido a isso está nas palavras do mestre Jesus.

Quais são as causas dessa educação infrutífera? Essa foi a pergunta que eu fiz a mim mesmo tão logo assumi a cadeira de pedagogo em uma escola pública no sertão de Campos. Enquanto professor de língua inglesa minha pessoa percebia algumas contradições, mas, enquanto pedagogo meu olhar para os problemas maiores da educação do sertão se ampliou. A vivência em sala de aula, o ouvir a fala do aluno, o interagir com a comunidade escolar, as relações políticas internas da escola como a disputa pelo poder, a omissão da família, o livro didático, as formas de avaliação, etc., tudo me levou a crer que a educação do sertão de Campos está muito distanciada do que deveria ser – uma educação efetiva que esclarece, capacita, e cidadaniza o sertanejo.

A fala do aluno me foi e ainda é de grande valor epistemológico. É por meio dela que minha pessoa detecta vários problemas. Estes se estendem das problemáticas familiares aos problemas gnosiológicos propriamente. Percebe-se pelo falar do aluno quem são seus pais, qual o índice de capital intelectual de sua família, e se a criança está com problemas. No quesito capital intelectual, as famílias do sertão possuem um gigantesco débito, contudo, isso não significa que o sertão não tenha um alto índice de conhecimento ‘senso comum’ constituído historicamente e de grande valor científico. Infelizmente, a escola não pesquisa, nem registra, e nem valoriza esse conhecimento que tende a se diluir no tecido social e perder-se no tempo, pois, no processo de diluição os arcanos formais do conhecimento humano tendem a silenciar a antiga fala dos primeiros moradores do sertão. Portanto, aqui está um dos primeiros problemas da escola de Campos: “Ela é uma instituição alienígena para seu povo, pois, não o conhece, nem ouve sua voz”. Uma escola alienígena é aquela enfiada goela adentro de uma determinada sociedade. É a escola que surge por decreto governamental unicamente, e continua como uma mocinha mimosa que não decide em que lado está; a indefinição política dela é uma afirmação política de seus idealizadores.

É sabido no conhecimento sociológico que uma sociedade de baixo capital intelectual produzirá uma escola também de baixo capital intelectual, ou, uma escola alienada de sua realidade e descompromissada de sua principal função: “Produzir uma nova geração de pessoas, seres epistêmicos, preparados intelectualmente, e capazes de transitar pelos diversos níveis da sociedade”. A escola do sertão é cristalizadora; ela cristaliza cada classe em seu lugar e com isso impossibilita o transito social. É a escola da mesma coisa que se torna qualquer coisa.

As famílias, por sua vez, não percebem o que ocorre. E seguindo o curso da tradição cultural, se tornam cumplices de algo muito além de seu entendimento, ou seja, a família, de certa forma, apoia a política engendrada na escola, a política dos donos do sertão. “Aqui se finge que ensina e que se aprende”. Os pais sabem de alguma maneira que seus filhos não mudaram muito depois da escola, mas, mesmo assim, continuam a aceitar a escola como se esta cumprisse sua missão. A família, a escola, e o político estão cumpliciados no processo.

As instalações de muitas de nossas escolas ou quase todas, digamos assim, refletem a pobreza de suas famílias. Geralmente, uma escola de Campos é constituída de: Salas de aula (4 ou 6) sem nenhuma ventilação, sem recursos ou poucos recursos, banheiros fétidos (2 um masculino e um feminino), uma secretaria (sem banheiro), uma cozinha que funciona como dispensa, e um pequeno pátio. Recentemente, com recursos federais, estão sendo construídas quadras poliesportivas, mas, sem cobertura, o que me parece ser um engano, pois, a quadra sem a cobertura não terá muita serventia. O que se ver é que no sertão temos a escola pobre para o povo pobre. Isso confirma a relação promíscua entre escola e sociedade, esta última tem a escola que consegue ver.

Dialogando com os pais de alunos percebi que alguns sabem, embora sem o conhecimento formal e com muitas limitações, que a escola de seus filhos não atende as necessidades deles, contudo, o comportamento passivo dessas famílias continua. Lidamos enquanto docentes com famílias amansadas, domesticadas quanto as suas cobranças.

A família só exerce sua força quando o alvo é o professor. A escola, em si, nunca será alvo da família com raras exceções, pois, esta também reflete o espelho do estado, o que a família treme de medo. Mas, se o professor resolver agir sozinho e cobrar de seus alunos um aprendizado melhor, as famílias logo aparecem para o “jeitinho”, sim, pasmem! O jeitinho começa na escola: “Professor, meu filho precisa de 2 pontos, num dá para fazer nada não?” Ouvi isso a vida inteira, esse tal “num dá pra fazer nada não”. A corrupção vem de casa e passa pela escola e esta a consagra como cultura nacional infelizmente.

Dialogando com o corpo docente e com o staff escolar (staff intelectual e de apoio) percebemos o seguinte:

a) A docência está cansada e frustrada;

b) A docência, com raras exceções, é má preparada;

c) Os cursos de capacitação não capacitam;

d) As licenciaturas não preparam o docente para a realidade da educação do sertão;

e) A classe docente não ler;

f) A classe docente sofre pelo overworking e depressão;

g) Os salários são péssimos, indignos!

h) O staff intelectual tem sua razão de ser por indicação política;

i) O staff intelectual não discute a educação;

j) O staff existe para preencher formulários e garantir o andamento e a ordem no processo.

k) O staff não tem compromisso com a educação libertadora;

l) O staff de apoio, embora concursado, é alienado no processo;

m) O staff de apoio não sabe o que faz na escola, só reconhece sua função imediata;

n) O staff de apoio tem baixa formação intelectual, e quanto a tem está abaixo das necessidades escolares;

o) Os pais, ou as associações de país servem para legitimar as decisões assimétricas da escola, constitui-se um suprimento de assinaturas.

Além dos problemas já colocados, a luta política na escola é uma pedra de tropeço para a consecução de uma educação positiva. Como os cargos maiores do staff intelectual é por indicação política surgem, então, no cenário escolar as mazelas que decorrem disso. Digamos, a coordenadora x que não apoia a diretora y tenta emperrar o sistema para que seu fracasso deponha contra a referida diretora. O oficial h atrapalha o professor z por que ambos disputam o mesmo cargo na direção. Ao longo de quase trinta anos, minha humilde pessoa viu um pouco de tudo. Esses problemas cuja origem é a própria natureza humana também atrapalham a escola e seus alunos que, na maioria dos casos nem sabem o que ocorre nos bastidores da moral escolar.

O livro escolar gratuito e para todos foi uma conquista recente na educação brasileira. O livro escolar poderia ter sido uma das maiores ferramentas para o aprendizado do aluno, no entanto, vejo-o com muito temor. A natureza ideológica dessa ferramenta tem me feito usá-la com certas restrições. Segue aqui nossa leitura dos mesmos:

a) O livro didático não é didático nas condições impostas pela realidade do sertão;

b) O livro didático não contempla as diferenças regionais;

c) O livro didático é universal;

d) O livro didático funciona na lógica da unidade nacional e não reconhece hegemonia de territórios sobre outros;

e) O livro didático é insipiente no quesito conteúdo para as necessidades sertanejas;

f) O livro didático é retrogrado no quesito exposição do conteúdo. Tomemos por exemplo o livro de português do quarto ano. Os PCNs nacionais orientam que o ensino do vernáculo segue a teoria dos gêneros linguísticos de Bahktin. O livro didático continua preso à visão aristotélica de que o estudo da gramática ajuda a organização do pensamento;

g) O livro didático de ciências traz muitos exemplos de experiências empíricas, mas, que não podem ser realizadas devido a falta de um laboratório nas escolas, quando o livro didático cria “soluções” com experiências baratas e de pouca atratividade para o aluno, ele repassa a ideologia da educação barata e sem qualidade. Ciência só se aprende e apreende suas leis na experiência. Qualquer coisa fora disso é mera especulação;

h) O conteúdo de matemática da quarta série não prevê a heterogeneidade dos alunos sertanejos. Isso é válido para os outros livros. No saber matemático lidamos com um livro texto que não pode ser usado uma vez que os alunos não conseguem ler e entender suas proposições. Ademais, o ensino da matemática, nesse nível segue o mesmo espírito dos anos seguintes – Uma matemática mnemônica, seu ensino não nos remete a sua origem prática;

i) Nas demais ciências como a história e a geografia algo muito perverso acontece. Digo isso por considerar esses saberes fundamentais para a formação de uma mente social crítica. A história não consegue dialogar com as realidades de cada região do país. O que nos leva a crer que é preciso regionalizar o livro didático, quanto mais regionalizado, talvez seja melhor. O estudo dos acontecimentos históricos é disposto pra legitimar o estado e causar uma falsa memória no aluno. Como exemplo, tomemos o termo “Descobrimento” nos livros de história da quarta série; seu uso é um absurdo, pois, sabemos que ele tem um peso ideológico muito grande. Legitimar o estado Português é uma estratégia para legitimar o estado brasileiro filho do primeiro. A terra descoberta deve aos seus descobridores, é esse o implícito.

Por mais que se preguem outras formas de avaliação, o professor sempre cairá na velha e incompetente provinha, e de preferência de múltipla escolha para facilitar a correção. Um professor de três turnos tem a cada trimestre em torno de 400 a 600 provas para corrigir, e além delas, os trabalhos etc., portanto, o tipo de avaliação escolar é diretamente proporcional à disponibilidade de tempo do mestre, e não as necessidades de seus alunos. Problema!

O overworking do professor é o fator que reduz o conteúdo significativo das avaliações problematizadoras e as redireciona para o universo dos exames mnemônicos. É uma questão de memória, e não de pensar! É por essa razão que o próprio mestre é filho de sua própria avaliação – passou a vida decorando respostas para marcar um x em algum lugar, e agora é professor de alguma coisa, e repete o mesmo processo, fazendo ou ajudando a criar a mesma ‘mente das formas’ sem conteúdo crítico. Desde os primeiros anos escolares até a adolescência, o aluno do sertão passa por um processo que eu chamo de “emburrecimento”.  Lhe é roubada a chance de sonhar, de imaginar, de transitar pelas formas de seu locus, de discutir e oralizar seu mundo; lhe é imposto um mundo estrangeiro cheio de realidades que para ele nada dizem.

Não pretendo aqui ter dito sobre os problemas da educação do sertão. Tentei, apenas, ladrar algumas coisas. Agora me recolho à poeira das estradas, aos mandacarus da caatinga sergipana, ao cenário lindo que Deus fez e não cobrou imposto. Sempre direi e morrei dizendo: “O sertão tem gente, o sertão é 100% viável”.

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