quarta-feira, 3 de abril de 2013

Arte: uma interpretação em pedaços V

Diante de um contexto marcado pela industrialização da arte, ou seja, pela reprodução em série de vários objetos artísticos, fica difícil se definir a arte no sentido mais tradicional do termo, ou seja, como algo vinculado a uma construção marcada pela originalidade do autor. Portanto, a reprodução é arte? Um indivíduo quando consegue reproduzir vários objetos para vendê-los pode ser considerado um artista ou apenas um profissional especializado nas técnicas da reprodução? O uso apenas das técnicas para a construção de um objeto artístico é arte?

Devido a essas questões, eu prefiro discutir a arte não como um objeto produzido, mas na forma como o leitor faz a leitura dela, assim como a finalidade dela. Para isso, acredito que seja importante pensarmos na natureza da arte e da ciência. A arte implica uma forma de expressão que permite ao seu autor agir livremente de acordo com a sua subjetividade. Diferente do discurso científico, o qual necessita comprovar a perspectiva dada pelo autor, na arte, o autor é livre para expressar seu mundo sem que precise comprovar nada acerca de sua expressão.

Não estou dizendo que exista uma distinção absoluta entre a arte e a ciência. Para se haver uma produção científica, nós, mesmo nos preocupando com o caráter da objetividade, inevitavelmente deixamos a marca de nossa subjetividade; como também para se haver a construção artística nós fazemos uso muitas vezes de algumas técnicas. Porém, na arte, o autor não precisa levantar dados para confirmar se o seu ponto de vista confere com as suas hipóteses. No trabalho artístico, o sentido de um autor é livre de qualquer obrigatoriedade comprobatória.

Depois de mostrar algumas diferenças concernentes à arte e à ciência, esclarecendo que a natureza da arte implica na não-necessidade dela em ter o rigor da objetividade da produção científica, cabe agora buscar compreender a relação dela com o leitor. Ao se identificar com uma determina expressão artística, o leitor simplesmente sente saciar suas dores pela forma como o autor conseguiu se expressar na sua obra. Muitas vezes não há explicação racional. A arte provoca as sensações, as percepções, e são essas emoções mais intensas que dão sentido ao leitor.

Nela, o leitor transita livremente no jogo dos seus afetos. É por mexer com os sentimentos mais profundos que a arte simplesmente provoca reações que tangenciam a ordem racional. Por ser fruto das subjetividades, a finalidade da arte e a interpretação do leitor não precisam ser mensuradas. Quanto mais a emoção prolifera de forma espontânea no leitor da arte, mais a expressão artística assume uma relevância. A arte faz com que o leitor possa encontrar uma compreensão de si através das expressões contidas nela, não através das explicações objetivas e comprováveis.

Na arte, o leitor vai buscar encontrar respostas para seus afetos mais profundos por ela ter a capacidade de produzir, não a explicação lógica e racional dos seus afetos, mas sim, a subjetividade e os sentimentos mais intraduzíveis que vagam em sua alma. É por isso que com a arte, o leitor, mesmo encontrando sentidos que fazem com que ele acredite que foram capazes de preencher o seu vazio, ele não se vê capaz de traduzir esse vazio, uma vez que a arte se envolve com um mundo interior intransponível e aquém de qualquer capacidade de decodificação e da logicidade racional.

Portanto, ao invés de discutir a arte enquanto objeto artístico, acho melhor entendê-la enquanto natureza e finalidade dela. Além disso, prefiro pensar na arte a partir da comunicação que o leitor faz dela. Por esse viés, passamos a compreendê-la sem cairmos na discussão de sua validade enquanto industrialização ou enquanto originalidade. A partir dessa ótica, conseguimos visualizá-la como qualquer forma de expressão que não esteja preocupada com resultados objetivos e precisos. Com isso, somos capazes de delinear com mais precisão o que seja arte.

Outros pontos merecem esclarecimentos. Um deles diz respeito ao que eu estou chamando de pedaços e o outro à questão da interpretação. Entretanto, antes de falar sobre eles, eu preciso mostrar a forma como eu encaro o leitor diante da arte. Muito tem se falado acerca da relação entre autor e receptor, porém, não gosto de conceber o leitor como um receptor até por que a recepção traz uma idéia de passividade, de espera, e é justamente isso que eu critico quando o assunto se refere à leitura de uma obra de arte. Prefiro conceber a idéia do receptor como co-criador.

A partir do instante em que o indivíduo se apropria de uma obra de arte e faz uma interpretação dela, antes de apenas reproduzir o sentido original que levou a construção da arte, ele é capaz produzir seu próprio sentido. Daí a necessidade de pensá-lo como um co-criador, uma vez que ele vai recriar e remanejar todos os sentidos dados pelo autor, isto é, vai construir seu próprio mundo na re-elaboração dos significados contidos no discurso de determinados objetos artísticos. Por ser subjetividade, o leitor produz suas próprias interpretações.

Depois de esclarecer sobre minha necessidade de alterar o termo de receptor para co-criador, passarei a falar sobre a idéia que eu tenho de interpretação e de pedaços. Não podemos falar de cultura humana se não pensarmos em transformações. Não podemos pensar em uma cultura na sociedade se não reconhecermos a natureza dinâmica dela, assim como a sua natureza plural proveniente dos diversos contatos produzidos por intermináveis interações entre vários meios sociais, uma vez que a sociedade vive constantemente estabelecendo trocas.

Situados em meio a essa transformação e trocas culturais, os indivíduos inevitavelmente passam por mudanças constantes. Em se tratando de uma cultura global marcada pelo excesso de informação e pela facilidade da comunicação e veiculação dessa informação proveniente de todas as partes do planeta, os indivíduos estão alterando com maior rapidez suas formas de pensar o mundo. Antes dos indivíduos serem totalidades, por se encontrarem inseridos nessa imensa rede de trocas culturais, eles estão sempre em construção e não passam de pedaços deles mesmos.

Aí é onde entra a questão referente à interpretação. Por ser pedaços ao invés de totalidade, na interpretação, o leitor não se apropria de todo o sentido da arte. A interpretação, antes de ser a captação plena de todos os significados, deixa ao longo da leitura vários lapsos, pois o leitor é a sua própria lacuna. A interpretação se desliza pelo fato do olhar de cada um produzir sentidos diferentes em relação aos outros olhares, pois temos que admitir as subjetividades e a própria condição inacabada do leitor em seu constante processo de construção de si.

Além da interpretação não ser total visto que os sujeitos não passam de pedaços deles mesmos, e, portanto, só fazem a leitura da arte de forma parcial e limitada, a interpretação é resultante da forma como cada indivíduo compreende o mundo a partir da influência que ele adquire em suas realidades sociais através das trocas de experiências que estabelece com ela. Em cada realidade, os indivíduos se apropriam de valores, hábitos, olhares, costumes, estéticas de cada meio, adquirindo formas próprias de ver, pensar e agir no mundo compartilhadas coletivamente.

Não estou querendo estabelecer um olhar isolacionista dos meios sociais. Como eu atentei anteriormente, pensar a cultura na sociedade implica em visualizarmos as constantes trocas entre diversos meios sociais. O que eu estou chamando atenção é que, apesar das trocas e das constantes mudanças pelas quais passa a cultura, não podemos deixar de admitir que existam formas próprias de se conceber o mundo em cada realidade social particular. Basta percebermos que em certos meios, é mais comum a aceitação de determinada arte do que em outros.

Não podemos negar que apesar do trânsito e da interação entre diversas formas de cultura, que não existam heranças estéticas, ou seja, formas de se olhar e avaliar determinados valores que são mais comuns em uma realidade social do que em outra, valores que são passados de geração a geração e que terminam fazendo parte de um hábito de determinado meio social. Por isso que eu acho que seria um absurdo afirmarmos que a arte não é reflexo de uma dada realidade. Todos os nossos discursos são projeções dos valores que norteiam certo momento da sociedade.

No entanto, quando o leitor de um determinado meio social interpreta uma arte, devemos ter cuidado em não cobrar dele uma interpretação padronizada, pois esse leitor, ao interpretar uma arte, projeta sua realidade social, além de sua subjetividade. Temos uma mania de reduzir a interpretação de uma arte ao que o autor quis dizer. Isso acontece bastante nos ambientes educacionais. Impomos uma única e “verdadeira” interpretação negando a possibilidade do aluno enquanto leitor, também aprender a criar sua própria interpretação.

Insistir em uma única forma interpretativa para arte implica em querermos diluir os sonhos, as angústias, os medos, as subjetividades do leitor, assim como suas concepções construídas em seu meio social em um modelo padronizado. Entretanto, esse modelo não existe. A sociedade é composta por uma infinidade de grupos sociais e cada indivíduo tem sua própria forma de interpretar o mundo. Aceitar a liberdade de se produzir o sentido de uma arte, é permitir a convivência com a diversidade coletiva e estimular o senso de criatividade e imaginação do leitor.

Reconhecermos a diversidade cultural implica em repensarmos nossas intolerâncias. Quanto à criatividade e à imaginação, temos que convir que a educação que busca estratégias para que seus alunos reconheçam suas capacidades críticas e independentes, é uma educação que promove um aluno mais autônomo acerca das coisas. Um dos problemas que eu verifico em nossa sociedade, é a perpetuação do paternalismo, ou seja, a idéia de que um manda e o outro obedece. No caso da interpretação da arte, esse paternalismo é detectável na relação entre autor e leitor.

Quando estimulamos o aluno a conceber a idéia de que existe apenas uma interpretação “correta”, ou seja, que qualquer interpretação que não esteja condizente com as intenções contextuais e subjetivas do autor são consideradas “erradas”, o que estamos provocando é a perpetuação de pessoas que, ao invés de exercitarem seu senso crítico, isto é, sua própria forma de construir o seu olhar sobre o mundo, ficam reduzidas a uma passividade, à espera de uma verdade. Ficar nessa espera enquanto efeito político, não é nada saudável para a sociedade.

Por que não é saudável? Ora, o que mais verificamos em nosso dia a dia são pessoas que, apesar de criticarem as falhas existentes no sistema, por exemplo, são incapazes de reivindicarem, ou seja, de se mobilizarem para que essas falhas sejam re-solucionadas. O que mais detectamos são pessoas que não participam, nem se informam acerca das decisões das políticas públicas. São pessoas que têm medo de enfrentar o poder. Esse medo é fruto da passividade e dessa cultura da aceitação que fazemos acerca daqueles que assumem a função da autoridade.

Além de termos medo por não aprendermos a ter a liberdade de expressar nossa própria opinião, por apenas esperarmos aqueles que assumem o papel da autoridade, nos esquivamos das nossas próprias responsabilidades, jogando-as para o outro. Essa idéia de apenas comprometermos os outros, além de alimentar nossa covardia para a reivindicação, nos mantêm com nosso infantilismo por não sermos capazes de admitir as conseqüências de nossas escolhas, reduzindo problemas que são provenientes de uma coletividade unicamente ao outro.

Quando se tecem críticas acerca do consumidor da cultura de massa, nos esquecemos que esse consumidor muitas vezes se coloca diante dessa cultura de forma alienada, não apenas devido ao mercado, mas sim, devido à dificuldade que ele tem tido para se reconhecer enquanto subjetividade. Se houvesse um exercício em nossa cultura de estimular aos indivíduos a liberdade deles produzirem sua própria interpretação e seus sentidos, não haveria tanta gente passivamente à espera da música do momento e preocupada com a opinião pública.

É importante que o indivíduo reconheça a importância de seu próprio olhar. É pertinente que ele reconquiste a sua subjetividade. Porém, é imprescindível que seja rompida essa idéia de autoridade inquestionável que é infiltrada nele, seja na educação, na família, na arte, nas políticas públicas, etc. O importante é fazer o indivíduo perceber que ele tem opiniões acerca das coisas e que ele é capaz de construir e reconstruir essas opiniões. Devemos semear a liberdade dele em criar, produzir sentidos, construir suas próprias interpretações acerca das coisas.

Exemplo: eu posso enquanto professor de sociologia, apresentar aos meus alunos a música “Roda Viva” de Chico Buarque. Porém, eu não preciso resumir a canção a um significado apenas e não aceitar outra interpretação que não seja apenas essa. Eu posso pedir a cada aluno que dê a sua interpretação e depois de construída essa interpretação, eu posso propor a eles que articulem o sentido dado por eles com conceitos trabalhados em sala. Depois eu mostrarei, articulando com os conceitos, quais os contextos históricos, sociais e políticos que levaram a construção dessa música.

Além de eu respeitar a subjetividade dos alunos e as concepções de mundo provenientes de suas experiências sociais responsáveis por essa construção da subjetividade, eu promovo a liberdade interpretativa, sem contar a capacidade criativa dos discentes e o olhar crítico deles por fazer com que eles articulem os conceitos trabalhados em sala de aula com suas interpretações. Porém, eu não deixo apenas os sentidos produzidos individualmente serem válidos, pois também recorro ao esclarecimento acerca do contexto no qual foi produzida a arte.

Portanto, não é que eu ache que o educador não deva apresentar uma obra de arte para o aluno sem contextualizá-la. Entretanto, isso não significa que essa contextualização seja motivo para que a arte fique reduzida a uma única interpretação e ao que é certo e errado. O educador também deve motivar o aluno a elaborar sua própria interpretação para que ele também possa produzir um olhar crítico e autônomo e seja capaz de se reconhecer como subjetividade, ou seja, produtor do conhecimento, e não apenas como um receptor desse conhecimento.

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